Na primeira metade do século XX, o cientista alemão Max Planck (1858-1947), um dos “pais” da física quântica, disse que o avanço da ciência não vinha do convencimento dos opositores à veracidade das ideias que emergem, mas porque eles eventualmente morrem, abrindo espaço para uma nova geração já familiarizada com estas novas “verdades” científicas. Em resumo, a ciência avançaria por meio de uma série de funerais. Alguns anos depois, o escritor de ficção científica britânico Arthur C. Clarke, em reflexão semelhante, afirmou que “quando um velho e reconhecido cientista diz que algo é possível, ele está quase sempre certo. Mas quando ele diz que algo é impossível, ele muito provavelmente está errado”.
Vivemos, porém, numa época de grandes desafios globais, como as mudanças climáticas, o aumento da pobreza e a crescente escassez de recursos, ao mesmo tempo em que as ideias e conhecimentos surgem e mudam tão rápido que não poderíamos mais nos dar ao luxo de esperar pela morte dos velhos cientistas e o enterro de suas antigas noções. Foi com isso em mente que os responsáveis pelo site Edge.org, um dos maiores e mais importantes fóruns de discussão de intelectuais e pensadores da internet, decidiram fazer deste o tema de sua pergunta anual — “Que ideia científica está pronta para ser aposentada?”.
Fundado em 1996, o Edge tem suas origens no “Clube da realidade”, reunião informal de cientistas, intelectuais e pensadores que desde 1981 procura fomentar o debate sobre os rumos da ciência e do conhecimento humanos. Como destacou John Brockman, um dos fundadores do site, a ideia é que para atingir o extraordinário é preciso encontrar pessoas extraordinárias.
E as respostas à pergunta do ano dos mais de 160 especialistas convidados de diversas áreas, entre eles o psicólogo e linguista Steven Pinker, o biólogo Richard Dawkins e o escritor Ian McEwan, publicadas hoje na página do Edge e com exclusividade no Brasil por O GLOBO, são muitas vezes surpreendentes. Na lista de ideias prontas para serem abandonadas estão desde conceitos arraigados no modo de fazer ciência, como o próprio método científico, a noções como a universalidade das leis da física, relações de causa e efeito, o livre arbítrio, a natureza humana até a crença de que não há limites para o avanço da ciência como preconizado por Planck.
Mas diante de tantos ataques a dogmas científicos estabelecidos, talvez tenha sido McEwan, um dos poucos não cientistas entre as dezenas de colaboradores, quem fez a maior defesa da importância de preservar todo tipo de conhecimento, mesmo aquele que hoje se sabe falso ou incorreto: “Cuidado com a arrogância! Não aposentem nada! Uma grande e rica tradição científica deve manter tudo que tem. A verdade não é a única medida. Há maneiras de estar errado que ajudam os outros a acertarem. Alguns estão errados, mas brilhantemente. Alguns estão errados, mas contribuem para melhorar o método. Alguns estão errados, mas ajudam a encontrar a disciplina... Toda especulação sériae e sistemática sobre o mundo merece ser preservada. Precisamos lembrar como chegamos até aqui, e não gostaríamos que o futuro nos aposentasse. A ciência deve olhar para a literatura e manter viva e vibrante sua história como um monumento à engenhosidade e persistência. Não vamos aposentar Shakespeare e também não devemos aposentar Bacon”, escreveu.
Confira a seguir alguns temas destacados:
Os seres humanos têm diferentes raças
Embora o conceito de raça tenha sido derrubado do ponto de vista biológico a partir dos anos 60 por sucessivas descobertas no campo da genética, ele permanece profundamente arraigado na cultura e ainda é usado até por cientistas, como em estudos que buscam entender porque alguns grupos humanos são mais afetados por determinadas doenças. Mas para a antropóloga e paleobióloga Nina Jablonski, professora de Universidade Estadual da Pensilvânia, EUA, isso serve como desculpa para manter de pé a perigosa ideia de que alguns grupos e etnias podem ser “melhores” ou “superiores” a outros, devendo por isso ser abandonada de imediato.
Felicidade é algo sempre bom
A ideia de que emoções positivas como a felicidade são sempre boas, enquanto as negativas, como tristeza e medo, são inerentemente ruins não leva em conta o quanto as últimas são essenciais para nossa sobrevivência e sanidade, defende June Gruber, professora de psicologia da Universidade de Yale, EUA. Para Gruber, o importante é o contexto em que se dão estes sentimentos e se eles impedem ou promovem a capacidade do indivíduo de correr atrás de seus objetivos, obter recursos e funcionar em sociedade. “Se uma emoção é ou não 'boa' ou 'ruim' parece ter pouco a ver com a própria emoção, mas como conscientemente navegamos na maré da nossa rica vida emocional”, diz.
Existe um verdadeiro altruísmo
Cunhado na década de 1850 pelo sociólogo francês Auguste Comte, o termo altruísmo desde então serve para definir ações e atitudes que indivíduos tomam para ajudar outras pessoas sem buscar o benefício próprio e algumas vezes até ignorando sua autopreservação, indo de encontro à noção de que os seres humanos, e mesmo os animais, são egoístas por natureza. Isso, no entanto, criou a ilusão de que o altruísmo seria verdadeiramente desinteressado. “Esta ideia de que há uma hierarquia do altruísmo, com um quase místico altruísmo 'verdadeiro' residindo em algum lugar à distância e nossas maculadas tentativas de praticá-lo permeando a vida real, está espalhada”, considera Jamil Zaki, professor de psicologia da Universidade de Stanford.
Fazemos escolhas de livre arbítrio
O ser humano vive a ilusão de que sua vida é feita de escolhas às quais foi livre para fazer. Esta ideia de que existe um livre arbítrio está na base de muitas religiões, mas não se sustenta diante de recentes descobertas científicas, destaca Jerry Coyne, professor do Departamento de Ecologia e Evolução da Universidade de Chicago. De acordo com ele, o que parece ser um decisão é apenas resultado das leis da física que determinam a direção a ser tomada. “Experimentos recentes apoiam a ideia de que nossas ‘decisões’ precedem inclusive a consciência de tê-las feito. De fato, nossa sensação de termos ‘feito uma escolha’ pode ser ela mesma uma confabulação posterior”, avalia.
Há características inatas e outras adquiridas
A dicotomia entre o que seria uma característica inata e uma adquirida foi um tema que atraiu a atenção de muitos colaboradores do Edge. Para eles, esta separação entre natureza e criação não é mais válida diante de descobertas em campos tão diversos quanto a genética e a ciência do comportamento. “O erro mais elementar que as pessoas cometem ao interpretar os efeitos dos genes versus os efeitos do ambiente é presumir que se pode verdadeiramente separar uns dos outros”, afirma Timo Hannay, diretor da Digital Science . Ou, como diz a psicóloga Alison Gopnik, da Universidade da Califórnia em Berkeley, “quase tudo que fazemos não é só o resultado da interação entre natureza e criação, mas ambas simultaneamente".
A estatística é o caminho da verdade científica
Outro tema que se repetiu nos textos foi a validade da estatística como forma de conhecer a realidade por meio dos resultados de experimentos. Segundo Charles Seife, professor de jornalismo da Universidade de Nova York, conceitos como “estatisticamente significativo” acabaram se tornando muletas para transformar resultados sem sentido em algo publicável. Já Emanuel Derman, professor da Universidade de Columbia, EUA, alerta que o poder dado à estatística está levando ao abandono de outras maneiras de fazer descobertas, ligadas à intuição. “A estatística pode apenas revelar tendências passadas e correlações, e presumir que elas persistirão. Mas como diz uma famosa frase sem autor, correlação não é causa”, ressalta.
As leis da natureza são universais
O princípio da universalidade tem calcado a ciência há séculos, mas muitos especialistas creem que está na hora de se aposentar a ideia de que o que vale aqui na Terra também é verdade nos confins do Universo. “A relação entre as nossas propriedades e as do mundo é chamada de princípio antrópico. Mas se o Universo nos foi dado em uma única cópia, essa relação não ajuda e precisamos especular sobre a causa divina que fez com que o Universo tenha sido construído sob medida para a Humanidade. Enquanto isso, em um multiverso com muitas partes diferentes e leis diferentes, a correlação entre nossas propriedades e as da parte do mundo onde podemos viver faz perfeito sentido”, afirma Andrei Linde, físico de Stanford.
O cérebro pode ser dividido em áreas
A ideia de que o cérebro pode ser dividido em hemisférios e áreas especializadas em determinadas tarefas e funções não corresponde mais à realidade mostrada pela neurociência e por isso deve ser aposentada, afirmam os especialistas consultados pelo Edge. “Embora seja verdade que o cérebro consista de dois hemisférios e que um hemisfério geralmente entre em atividade antes do outro durante nossas ações, fala ou percepção, ambos lados do cérebro trabalham juntos em quase todas situações, tarefas e processos. Os hemisférios estão em constante comunicação um com o outro e simplesmente não é possível que um funcione sem que o outro se junte“, diz Sarah-Jayne Blakemore, pesquisadora da Royal Society e da Universidade de Londres.
Testes clínicos e modelos animais são a única forma de avanço na medicina
Nas últimas décadas, desenvolvimento da medicina foi acompanhado pela noção de que quanto mais amplo um estudo, melhor, e que os testes clínicos aleatórios de novas drogas é o padrão a ser perseguido. Mas tanto isso quanto os modelos de experimentação com animais não são os únicos caminhos para o avanço na área, defendem Dean Ornish, fundador e presidente do Instituto de Pesquisas em Medicina Preventiva, e Azra Raza, professora da Universidade de Columbia. “As descobertas da genômica tornarão possível entender melhor as variações individuais em resposta aos tratamentos do que a esperança que esta variabilidade desapareça numa média de pacientes escolhidos aleatoriamente”, aponta Ornish.
Não há limites para o avanço da ciência
O tema mais abordado pelos colaboradores do Edge é uma resposta direta à pretensão da Humanidade de que algum dia será capaz de explicar o Universo e tudo que há nele. Para Martin Rees, ex-presidente da Royal Society, sempre haverá aspectos da realidade a serem descobertos. Ou, como resumiu Paul Saffo, futurologista e professor da Universidade de Stanford, “o mundo da ciência justifica sua existência com a grande ideia de que oferece respostas e, por último, soluções. Mas privadamente todos cientistas sabem que o que a ciência faz mesmo é descobrir a profundidade da nossa ignorância. Vamos medir o progresso não pelo que é descoberto, mas pela crescente lista de mistérios que nos lembram o quão pouco sabemos”.
Tirei do Blog do meu amigo Hermes C Fernandes
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