Por Hermes C. Fernandes
A indústria religiosa patenteou o processo de padronização comportamental em série, nomeando-o dolosamente de santificação. O instrumento usado na produção de crentes em grande escala atende pelo nome de discipulado. Cada novo discípulo é conclamado a reproduzir-se, formando outros que sejam sua réplica. Assim, o que chamamos de discipulado está mais para clonagem.
Definitivamente, santificação nada tem a ver com a produção de bonequinhos de chumbo. O processo de santificação está estreitamente ligado ao de individuação.
Pedro nos insta a que cheguemos a Cristo, “pedra viva, rejeitada, na verdade, pelos homens, mas, para com Deus eleita e preciosa”. Semelhantemente, tornamo-nos“pedras vivas, edificados como casa espiritual”, para sermos “sacerdócio santo”, a fim de oferecermos “sacrifícios espirituais, aceitáveis a Deus por Jesus Cristo” (1 Pe. 2:4-5).
Esta não é a única vez em que encontramos esta analogia nas páginas do Novo Testamento. Portanto, seus leitores provavelmente estavam familiarizados com ela, e compreendiam que o novo templo erigido por Deus era composto de gente e não de tijolos inanimados. Bastava que Pedro se referisse a cada um de nós como “pedras” ou “tijolos”. Porém, ele, deliberadamente, acrescenta o adjetivo “viva”. Não somos apenas pedras, mas pedras vivas. Qual a razão de ele ter acrescido o adjetivo?
Tudo o que vive está em constante movimento. Não se trata de algo estático, mas dinâmico, em constante evolução e maturação. Assim somos nós. Nosso maior exemplo é Cristo, que sendo Deus, esvaziou-Se completamente, para submeter-Se ao processo de maturação. O escritor de Hebreus nos afiança que, mesmo sendo Filho, “aprendeu a obediência por meio daquilo que sofreu; e, tendo sido aperfeiçoado, veio a ser o autor de eterna salvação para todos os que lhe obedecem” (Hb.5:8-9).
Todos igualmente estamos envolvidos neste processo de aperfeiçoamento, “até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo, para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados ao redor por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente. Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua edificação em amor” (Ef.4:13-16).
Como tijolos vivos somos devidamente assentados numa das paredes do santuário de Deus. Não somos mais tijolos soltos, vulneráveis e suscetíveis a qualquer vento. Todavia, depois de assentados, não deixamos de crescer. Trata-se do processo de individuação, a que Paulo chamou de “homem perfeito”, ou, homem completo, maduro. Deixamos de ser meramente pessoas para ser plenamente indivíduos. O termo “indivíduo” quer dizer indivisível, inteiro, íntegro.
Uma das características deste processo de individuação é a autenticidade.
Pedro diz que Cristo, como pedra viva e preciosa para Deus, sofreu a rejeição dos homens. O preço da autenticidade é ser rejeitado pelos padrões vigentes no mundo. Por não nos dobrarmos à padronização, somos tidos por rebeldes, insurgentes, seres exóticos que devem ser empurrados para as margens da sociedade.
Já não somos definidos pelos papéis sociais que desempenhamos, nem pelo statusque alcançamos, ou por qualquer outra coisa. O que somos deriva-se do que Ele é. É de nossa relação com Ele e do lugar que ocupamos em Seu propósito que advém o significado de nossa existência.
Ao ser enviado por Deus para retirar o Seu povo da escravidão do Egito, Moisés perguntou-o: O que direi a eles? Em nome de que Deus me apresentarei? “Respondeu Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos olhos de Israel: EU SOU me enviou a vós” (Êx. 3:14).
As divindades egípcias eram conhecidas por seus nomes. Mas o Deus de Israel não poderia ser definido pela junção e pronúncia de alguns fonemas produzidos por lábios humanos. Para além de todas as definições, Ele é o que é. Por isso, Deus proibiu que Lhe fizessem imagens. Por mais talentoso que fosse o artista, ele seria incapaz de representar o Deus Criador dos céus e da terra numa escultura.
Este mesmo Deus ordenou que fôssemos santos, porque Ele é santo. Portanto, não devemos nos deixar definir por coisa alguma, senão pela graça que nos foi concedida por este Deus. É esta graça que possibilita ao homem mortal relacionar-se com o Deus Eterno e que deveria pautar nossa relação com o restante da criação. Com isso em vista, Paulo declara:
“Mas pela graça de Deus sou o que sou; e a sua graça para comigo não foi vã, antes trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de Deus que está comigo.” 1 Coríntios 15:10
O que faço não me define, mas revela quem sou. Ainda que eu faça mais do que todos os que vieram antes de mim, devo creditar o meu desempenho à graça, pois ela que verdadeiramente define quem sou. O que faço, faço porque sou. Mas não sou o que sou pelo que eu faço. Apenas cumpro o propósito de minha existência.
A santificação coloca cada coisa em seu devido lugar. Os fatores são devidamente ordenados para que não alterem o produto. A santificação realinha o significado de cada coisa, e nos faz vê-la em perspectiva.
Havia uma discussão entre os religiosos dos tempos de Jesus em torno do que era mais importante, o ouro ou o templo, a oferta ou o altar. Jesus colocou as coisas na perspectiva certa:
“Ai de vós, condutores cegos! pois que dizeis: Qualquer que jurar pelo templo, isso nada é; mas o que jurar pelo ouro do templo, esse é devedor.Insensatos e cegos! Pois qual é maior: o ouro, ou o templo, que santifica o ouro? E aquele que jurar pelo altar isso nada é; mas aquele que jurar pela oferta que está sobre o altar, esse é devedor. Insensatos e cegos! Pois qual é maior: a oferta, ou o altar, que santifica a oferta? Portanto, o que jurar pelo altar, jura por ele e por tudo o que sobre ele está; e, o que jurar pelo templo, jura por ele e por aquele que nele habita; e, o que jurar pelo céu, jura pelo trono de Deus e por aquele que está assentado nele.” Mateus 23:16-22
Em outras palavras, o todo é que santifica as partes e não vice-versa. A oferta é santificada pelo altar onde foi depositada. Fora do altar, ela deixa de ser oferta, isto é, perde o seu significado como tal, e passa a ser apenas dinheiro.
Como indivíduos, nosso significado advém de nossa relação com o todo. Não confunda individuação com individualismo. Nossa relação com o todo é sinérgica e recíproca. Assim como o todo santifica as partes, as partes devem atribuir santidade ao todo e reconhecer a santidade de cada parte individualmente.
Não se trata de atribuir significado pela função que desempenha, e sim pela relação que se tem. Ser pai, por exemplo, agrega significado à nossa vida. É muito mais do que, simplesmente, um papel social.
Uma mão deve seu significado à relação que tem com o resto do corpo. Ainda que, eventualmente, ela fique imobilizada, não deixará de ser o que é.
Nossa relação abarca ao mesmo tempo, o todo e as demais partes de per si, independente da função desempenhada. “Pois assim como em um corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma função, assim nós, embora muitos, somos um só corpo em Cristo, e individualmente uns dos outros”(Rm. 12:4-5). Repare no detalhe: somos membros do corpo, mas individualmente membros uns dos outros. Não se pode santificar o todo e desprezar as partes.
Não se trata apenas de ter consciência de sua existência e significado, mas também de se ver como parte de uma rede de cuidado mútuo. O que ocorre num extremo da rede, afeta o outro extremo. Estamos todos conectados. Por isso, “se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele” (1 Co.12:26).
Somente poderemos oferecer e receber cuidado se admitirmos nossa interdependência. De sorte que “o olho não pode dizer à mão: não tenho necessidade de ti; nem ainda a cabeça aos pés: não tenho necessidade de vós” (1 Co.12:21). Todos, invariavelmente, dependemos uns dos outros. E esta interdependência nos faz santificar uns aos outros, honrando-os, isto é, atribuindo-lhes significado especial e intransferível.
Somente poderemos oferecer e receber cuidado se admitirmos nossa interdependência. De sorte que “o olho não pode dizer à mão: não tenho necessidade de ti; nem ainda a cabeça aos pés: não tenho necessidade de vós” (1 Co.12:21). Todos, invariavelmente, dependemos uns dos outros. E esta interdependência nos faz santificar uns aos outros, honrando-os, isto é, atribuindo-lhes significado especial e intransferível.
Retomando a analogia do santuário: somos pedras vivas posicionadas em seu próprio lugar nas paredes do templo, e, assim, coletivamente, tornamo-nos habitação de Deus. Ninguém é habitação de Deus em seu isolamento. Carecemos da relação com o todo. Nem tudo o que somos em conjunto, somos em particular.
Paulo diz que “todo o edifício bem ajustado cresce para templo santo no Senhor, no qual também vós juntamente sois edificados para morada de Deus no Espírito” (Ef. 2:21-22).
Muitos alegam terem deixado de congregar por serem eles mesmos o templo de Deus. Estes parecem ignorar a advertência bíblica de que “aquele que vive isolado busca seu próprio desejo; insurge-se contra a verdadeira sabedoria” (Pv.18:1).
A santificação visa nos preparar para a comunhão. Somos indivíduos aprendendo a nos relacionar com outros indivíduos, atribuindo-lhes significado, e respeitando e honrando seu próprio lugar no Todo. A santificação, portanto, é um processo que começa na individuação e culmina na comunhão.
Cada pedra viva é formada (individuação), depois encaixada em seu lugar (significação), e, finalmente, emboçada (comunhão). Todas as pedras juntas, unidas em amor, suportando umas às outras, formam o templo do Deus vivo. Todavia, nossa individualidade é mantida. Somos absorvidos pelo Todo, mas jamais dissolvidos. Por trás da camada de massa que cobre a parede ainda há tijolos assentados cuidadosamente uns sobre os outros.
Qualquer proposta de espiritualidade que promova a diluição do ser não deveria nem sequer se levada a sério. Tudo neste mundo parece conspirar para que o indivíduo perca sua identidade e passe a agir de acordo com decisões tomadas por outros. E é assim que certos grupos se perpetuam no poder.
Quando se perde a individualidade, deixando-se diluir, a pessoa é capaz de fazer coisas que jamais faria em sã consciência. É como se seu senso crítico ficasse em suspensão por um tempo. Fazem o que der na telha. Paulo nos adverte a não andarmos “como andam também os outros gentios, na vaidade da sua mente. Entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza do seu coração; os quais, havendo perdido todo o sentimento, se entregaram à dissolução, para com avidez cometerem toda a impureza” (Ef.4:17-19). A palavra chave desta passagem é dissolução, de onde vem o verbo dissolver. Nossos sentimentos são anulados. Nosso juízo é posto de lado. Agimos como que por instinto, mas, na verdade, apenas nos sujeitamos a uma consciência coletiva temporária.
Lemos em Êxodo 23:2 a admoestação que diz: “Não seguirás a multidão para fazeres o mal; nem numa demanda darás testemunho, acompanhando a maioria, para perverteres a justiça.” Jamais permitamos que pensem e decidam por nós, por mais cômodo que isso pareça ser. Cada qual terá que responder diante de Deus por suas próprias escolhas.
Esperar dissolução por parte dos que não conhecem a Deus pode parecer natural. O problema toma outra proporção quando os que se dizem porta-vozes da graça de Deus são os promotores da dissolução. Há que se redobrar o cuidado para que não sejamos enganados pela falsa espiritualidade dos tais. Desde os primórdios, a igreja tem tido que lidar com isso. Por isso, Judas denuncia os que se infiltram na igreja, e“convertem em dissolução a graça de nosso Deus” (Jd.1:4).
Nada mais contraditório do que usar a graça como pretexto para manipular as massas, levando indivíduos a abrir mão de sua individualidade, deixando-se dissolver.
Sejamos, portanto, sóbrios e atentos para que ninguém fale em nosso nome, usando-nos inescrupulosamente para atingirem alvos inconfessáveis. Comunhão, sim. Manipulação, jamais. Santificação, sim. Dissolução, jamais.
* Caso não tenha lido ainda, leia o artigo anterior a este para uma melhor compreensão do tema. Amanhã postarei a última parte desta reflexão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário