sexta-feira, 14 de março de 2014

Espiando pelas frestas da janela...


Por Hermes C. Fernandes


Um dos mais aclamados filmes de Alfred Hitchcock é "Janela Indiscreta". Lançado em 1954, o suspense gira em torno do fotógrafo profissional L.B. Jeffries está confinado em seu apartamento em Greenwich Village, Nova York, por ter quebrado a perna enquanto trabalhava. Como não tem muitas opções de lazer, vasculha a vida dos seus vizinhos com uma lente tele-objetiva, quando vê alguns acontecimentos que o fazem suspeitar que um homem matou sua mulher e escondeu o corpo. Com a ajuda de sua noiva Lisa, Jeff vai tentar provar que está certo.

Outros filmes já usaram a janela como tema e cenário. O último grande sucesso envolvendo o tema foi "Janela Secreta", baseado no bestseller de Stephen King. Estrelado por Johnny Depp, conta a história de um escrito em crise que decide isolar-se em uma cabana, mas passa a ser incomodado por um homem que o acusa de plágio.

De fato, nossa sociedade é fissurada em janelas. Até o sistema operacional de computador mais difundido no mundo é conhecido como "windows" ("janelas", em inglês).

Diferente das portas, que servem de passagem entre um ambiente e outro, as janelas nos oferecem uma vista panorâmica do mundo à nossa volta, preservando porém a nossa privacidade.

Entre as frestas das cortinas e persianas, podemos espiar, sem ser notados.

Deve-se ter cuidado com as janelas! Daniel, em seu exílio na Babilônia, abria as janelas do seu quarto para que pudesse orar voltado para Jerusalém. Porém, não podia imaginar que seus acusadores o espreitavam, aproveitando a visão proporcionada por suas janelas, buscando motivos para acusá-lo perante o rei, e assim, destituí-lo do cargo que tanto cobiçavam (Dn.6:10).

Às vezes, também serve pra fuga, como fez Paulo dentro de uma cesta, ajudado por irmãos (2 Co.11:33). Também ajuda na circulação de ar. Imagine o que seria da Arca de Noé sem uma janela!

Alguns a usam para sentar em seu parapeito, correndo o risco de cair, como aconteceu com Êutico, enquanto cochilou ouvindo a pregação de Paulo (At.20:9). Minha mãe conta que quando eu tinha 4 anos, sentei-me da janela de nosso apartamento no terceiro andar, e pra me tirar dali, ela teve que se aproximar silenciosamente para não me assustar.

Dentre todas as histórias bíblicas envolvendo janelas, nenhuma chama tanta minha atenção quanto a de Davi e Mical.

Mical era filha de Saul, antecessor e oponente de Davi. Foi usada pelo próprio pai como armadilha para enredar a Davi (1 Sm.18:20-21). O dote exigido por Saul por sua filha era de cem prepúcios de filisteus. Em vez de ser morto pelos filisteus, como esperava Saul, Davi trouxe não apenas cem, mas duzentos prepúcios.

Nenhuma mulher custou tanto a um homem! Os duzentos filisteus não perderam só o prepúcio, mas também a própria vida. Pelo menos, Mical estava apaixonada por Davi.

Numa ocasião em que seu pai intentava tirar a vida de Davi, Mical providenciou sua fuga através da janela do seu quarto (1 Sm.19:12). Tomando uma estátua, deitou-a na cama e a cobriu. Resultado: enganou o próprio pai para salvar a pele de seu amado.

Mas em vez de dizer que fizera aquilo por amor, Mical contou ao seu pai que havia sido ameaçada de morte por Davi, piorando ainda mais a situação. Parecia que entre Mical e Davi as contas estavam ajustadas. Ela lhe havia custado tanto, porém, em um momento crucial, salvou sua vida.

O tempo passou, Saul morreu, e Davi ascendeu ao trono de Israel. Uma de suas mais importantes empreitadas foi trazer de volta para Jerusalém a Arca da Aliança. Em uma procissão festiva, Davi vinha à frente do povo, dançando euforicamente.

Em vez de juntar-se à multidão naquela santa folia, Mical preferiu assistir da janela de seus aposentos, a mesma que ela usara para livrar a Davi. Se ela apenas assistisse, não haveria qualquer problema. Porém, a liberdade com que Davi dançava e louvava a Deus a incomodou. Pra ela, tudo não passava de exibicionismo.

O que, na opinião de Mical, lhe dava o direito de censurá-lo? Acredito que haja duas respostas:

1 - O senso de valor próprio - Afinal de contas, ela lhe havia custado muito caro, e isso parecia apontar para o alto valor que possuía. Muitos cristãos imaginam que o alto preço pago por Jesus pela nossa salvação revela o quão valiosos somos. E por conta disso, acham que têm o direito de sair julgando todos à sua volta. É como se ninguém mais tivesse valor tão alto. Mas a verdade é que o custo alto pago por Jesus não revela nosso valor, e sim a gravidade de nossos pecados. Quando um Juiz estabelece o valor de uma fiança, não o faz com base no valor do criminoso, mas na gravidade do seu crime. Não possuímos um valor intrínseco que nos coloque acima dos demais. O único valor que temos é o que nos foi atribuído, sem qualquer explicação, exceto o amor de Deus. Portanto, não temos o direito de julgar ninguém.

2 - O senso de justiça própria - Mical poderia imaginar que o fato de haver salvo Davi das mãos de seu pai, conferia-lhe o direito de julgá-lo. Muitas pessoas respaldam suas ações numa espécie de contabilidade, onde cada boa ação lhes dá o direito de cobrar da parte beneficiada. São motivadas sempre por interesses escusos. Quando agem como benfeitores, na verdade, estão agindo como credores.

Será que o fato de um dia haver ajudado a Davi, ou mesmo o fato de seu dote ter custado tão caro, davam-lhe o direito de desprezar e criticar seu marido?

A janela era ao mesmo tempo, o cenário e a testemunha do que ela havia feito por Davi. A mesma janela usada para ajudar, agora era usada para criticar e emitir juízo.

Ao fim da festa, "voltando Davi para abençoar a sua casa, Mical, filha de Saul, saiu a encontrar-se com ele, e lhe disse: Quão honrado foi o rei de Israel, descobrindo-se hoje aos olhos das servas de seus servos, como sem pejo se descobre um vadio qualquer" (2 Sm.6:20).
O preço pago por Mical por esta conduta indiscreta e repleta de juízo foi mais caro do que o preço que Davi pagou por seu dote.

O episódio se encerra com a seguinte sentença: "E Mical, filha de Saul, não teve filhos, até o dia da sua morte" (v.23).

Tal qual Mical, muitos fazem o bem a espera do momento certo para cobrar. Outros se acham no direito de nos criticar e censurar, por um dia nos ter feito algum bem. Por conta disto, muitos têm se tornado espiritualmente estéreis e infrutíferos.

Se fecharmos a janela indiscreta do preconceito, do julgamento precipitado, Deus nos abrirá as janelas dos céus, e nos derramará Suas bênçãos, tornando-nos frutíferos em toda boa obra.

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