Por Hermes C. Fernandes
Durante estes dias
de Copa do Mundo, o Brasil se transformou numa enorme caldeira cultural.
Gente de todas as línguas e matizes culturais convivendo pacificamente
nos mesmos espaços urbanos. Os mais curiosos se perguntarão: de onde vem
tal variedade cultural? Ou ainda: de onde procede o fenômeno cultural?
A
vocação primordial do homem é a de cultivar a terra. O texto sagrado diz que o
Criador tomou o homem a quem criara à sua imagem e semelhança e o pôs no Jardim
do Éden, incumbindo-lhe de guardá-lo e cultivá-lo (Gênesis 2:15). Surgia aí a
cultura. A própria etimologia da palavra encerra este significado. “Cultura”, do latim colere, que significa cultivar.
Portanto, a cultura surge a partir da dinâmica da interação do homem com o meio
em que está inserido. A cultura, portanto, abrange toda a produção de
conhecimento, crenças, arte, moral, lei, costumes e todos os hábitos e capacidades
adquiridos pelo homem como membro da sociedade, e geralmente deixados para as
gerações posteriores.
A
agricultura foi o ponto de partida desta interação entre o homem e o ambiente.
Todavia, ela se intensificou à medida que o homem foi descobrindo novas
demandas. Por exemplo, tomando a referência bíblica como base, quando se
percebeu nu, o homem coseu folhas de parreira, uma das árvores que ele
cultivava no jardim. Deus, entretanto, preparou-lhe uma vestimenta de pele de
animal. Surgia, então, a espiritualidade, parte essencial da cultura humana. A espiritualidade surge a partir
da reflexão acerca da finitude da vida. Os antropólogos identificam a
emergência da espiritualidade na raça humana com o tratamento dispensado aos
mortos. Desde que começou a vislumbrar a possibilidade da vida após a morte, o
homem passou a sepultar seus mortos de maneira reverente. Em vez de
abandoná-los para serem devorados pelas feras, passou a enterrá-los em covas,
acompanhado de flores e objetos de uso pessoal. A cultura, então, toma um rumo
inusitado, pois não se resume à interação com o meio, mas também à resposta que
se dá à existência, revestindo-a de sentido e significado. A vida deixa de ser
vista como um acidente e passa a ser encarada como cheia de propósito. As folhas
de parreira são substituídas por vestes feitas da pele de um animal
sacrificado. Era a resposta do homem à inexorável sentença da morte: a gente
não foi feito para acabar!
Duas cosmovisões começam a se digladiar entre si. Uma tem como
arquétipo a figura de Caim, o primogênito de Adão. A outra, a figura de Abel,
seu segundo filho. Caim, o agricultor, representa a fase em que a humanidade
deu seus primeiros passos na composição de sua cultura. O que importava era a
sobrevivência num mundo hostil, cheio de cardos e espinhos. Diferentemente da
Adão, seu pai, que representa o estágio em que o homem vivia da coleta daquilo
que encontrava. Abel, seu irmão, era pastor de ovelhas, e representa o
desenvolvimento da prática pecuária. Neste estágio, o homem deixa de se
preocupar exclusivamente com sua sobrevivência e passa a considerar assuntos
relativos à transcendência. A interação entre as duas cosmovisões nem sempre
foi amistosa. Todos conhecemos
o desfecho desta história. Caim mata Abel. Foragido, cabe a ele a construção da
primeira cidade. Portanto, a civilização nasce daí, do conflito, da fuga e do
desejo de estabelecer-se. Caim representa a humanidade que se assenta nos
lugares férteis, geralmente próximos de grandes rios e ali edifica seus centros
urbanos. Abel representa a humanidade em trânsito, nômade, hebreia, em busca do
horizonte. Se esta aspiração houvesse terminado com Abel, talvez ainda
estivéssemos às margens do Eufrates. Porém, Abel sai de cena e dá lugar a Sete,
dando prosseguimento à saga daqueles que não têm cidade permanente, mas buscam
a que se insinua no lugar onde nasce o sol, a cidade do futuro (Hb.13:14).
Desde então, a
humanidade tem estado dividida entre dois grupos. Os que almejam a manutenção
das coisas exatamente como são. E os que acenam para o futuro, desejando-o, não
como repetição de uma história cíclica, mas como algo novo e inusitado. O
primeiro grupo tende a produzir uma cultura estática, que valoriza, sobretudo,
as tradições, sem ao menos contestá-las e colocá-las à prova. O segundo grupo
tende a produzir uma cultura dinâmica, condenada a reformular-se
constantemente. Para uns, a era áurea se encontra no passado. Para outros, o
melhor ainda está por vir. Uns sonham voltar para o paraíso. Outros sonham com
a Nova Jerusalém, arquétipo da civilização do reino de Deus.
Para
os que seguem o que chamo de paradigma caímico, a cultura se resume no que se
produz para o próprio consumo. Para estes, a gente é feito pra acabar. Esta
sentença nos persegue por toda a existência. Portanto, aproveitemos ao máximo o
tempo de que dispomos. Mas para os que seguem o paradigma abélico, a cultura é
o rastro que se deixa para os que virão depois. É a pista de que passamos por
aqui. É a sinalização da estrada aberta e pavimentada pelos que nos antecederam.
A cultura é, por assim dizer, o que restou de nós. Nossas paixões. Nossos
sonhos. Nossos amores. Nossos temores. Tudo fica espalhado pela estrada na qual
transitamos durante nossa peregrinação existencial, indicando aos que virão
qual o melhor caminho a seguir e qual deve ser igualmente evitado.
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