Por Hermes C. Fernandes
Já foi o tempo em que
a mensagem do evangelho expunha as vísceras dos interesses mesquinhos de grupos
que se aproveitavam da ignorância alheia para lucrar. Com a aproximação da
igreja com os poderes constituídos, o teor subversivo de sua mensagem foi
prejudicado, de sorte que as eventuais perseguições sofridas deixaram de ser
pelas razões originais. Se antes era perseguida por denunciar as injustiças e
proclamar a chegada do reino de Deus, conclamando os homens a se arrependerem
de seus maus caminhos, hoje é perseguida pelo flagrante disparate entre a
mensagem original de seu fundador e sua prática abominável. A igreja deixou de
ser um instrumento usado por Deus para sabotar o sistema para tornar-se numa
engrenagem do mesmo.
Diferentemente de
apóstolos atuais, presos por esconder dinheiro não declarado em suas bíblias,
Paulo e Silas forma encarcerados por haverem libertado uma jovem que, possuída
por um espírito demoníaco, seguia-os oferecendo-lhes propaganda gratuita de seu
ministério. Eles se recusaram a lucrar em cima de alguém já tão explorado por
religiosos inescrupulosos da cidade de Filipos. Que diferença entre eles e
aqueles que hoje vivem e se locupletam da desgraça alheia!
O texto sagrado diz
que “vendo seus senhores que a esperança
do seu lucro estava perdida, prenderam Paulo e Silas, e os levaram à praça, à
presença dos magistrados. E, apresentando-os aos
magistrados, disseram: Estes homens, sendo judeus, perturbaram a nossa cidade,
e nos expõem costumes que não nos é lícito receber
nem praticar, visto que somos romanos” (At.16:19-21).
É claro que ninguém em
sã consciência admitiria que a razão pela qual exigia a prisão de alguém seria
o prejuízo sofrido. Para todos os efeitos, aqueles judeus intrometidos eram
perturbadores da ordem pública. Não houve sequer quem se prestasse a
testemunhar em favor deles.
De benfeitores
aclamados pela população, Paulo e Silas passaram a ser vistos e tratados como
inimigos de alta periculosidade. Além dos muitos açoites, foram lançados na
prisão, no cárcere interior, o que equivalente ao que hoje chamamos de prisão
de segurança máxima, e ainda por cima, prenderam seus pés no tronco. É assim
que deve ser tratado quem ouse insurgir-se contra o sistema. Eles não roubaram
ninguém. Não atentaram contra vida alguma. Apenas libertaram aquela cuja
condição espiritual dava lucros absurdos a seus senhores.
Paulo e Silas tinham
todas as razões do mundo para estarem amargurados, murmurando e questionando a
Deus pelo castigo injusto que recebiam. Em vez disso, próximo da meia-noite,
eles oravam e cantavam hinos a Deus, e, mesmo isolados dos demais, tinham a sua
audiência.
Repentinamente, sobreveio um tão grande
terremoto que sacudiu os alicerces do cárcere, provocando a abertura de todas
as celas e o rompimento dos grilhões e algemas. Repare nisso: todos os presos ficaram
virtualmente soltos. A liberdade estava a poucos passos de atravessar o portão
principal da prisão. O aparente livramento não veio só para os que oravam e
louvavam, mas para todos.
O carcereiro ficou
desesperado, pois sabia que se não contivesse a fuga dos prisioneiros, ele e
toda a sua família seriam considerados traidores e consequentemente condenados
à morte. A única maneira de evitar isso era tirando a própria vida. Se as
autoridades o encontrassem morto, pensariam que os amotinados o teriam
assassinado e isso certamente pouparia sua família da execução.
Na mentalidade predominante no mundo,
uns ganham, outros perdem. A vitória de alguns representa o fracasso de outros.
Mas na mentalidade do reino de Deus, ninguém precisa perder para outro ganhar.
O bem comum está sempre acima do bem particular. Paulo e Silas podiam
aproveitar o momento para fugir, sem se importarem com o que aconteceria àquela
família.
Como que num lampejo, Paulo finalmente
entendeu a razão pela qual Deus permitira tal injustiça sofrida por ele e seu
colega. Havia ali um homem a quem Deus desejava alcançar.
No afã de impedir que ele cometesse
suicídio, “Paulo
clamou com grande voz, dizendo: Não te faças nenhum mal, que todos aqui estamos” (At.16:28).
Quem poderia imaginar
que Paulo e Silas, presos considerados de alta periculosidade, fossem capazes
de conter aquela fuga? O que conferiu-lhe tal credibilidade junto aos presos?
Por que o obedeceram, abrindo mão da liberdade?
Há quem veja o
terremoto como o grande milagre descrito nesta passagem. Sinceramente, para mim
aquele terremoto não passou de um fenômeno natural como outro qualquer.
Terremotos eram frequentes naquela região. O verdadeiro milagre foi Paulo impedir
que os presos fugissem.
Aqueles homens, muitos
dos quais eram presos políticos, acusados de incitar a população contra o
império, ouviram as orações e canções entoadas por Paulo e Silas. Duvido muito
que fossem canções como as cantadas hoje em dia em muitos círculos cristãos,
que incitam sentimentos rancorosos e lustram o ego humano em vez de
simplesmente expressar confiança no amor de Deus.
Uma coisa é alguém de
fora vir para conter um motim dentro de um cárcere. Outra coisa totalmente
diferente é o motim ser contido por um dos presos, e, justamente, por aquele
que não deveria estar ali.
O terremoto não veio
para libertá-los da prisão, como muitos pregadores vociferam em seus púlpitos.
Se assim fosse, então, concluímos que Paulo e Silas não compreenderam a
mensagem.
O que vale mais, a
liberdade de centenas de homens ou a preservação da vida de um chefe de
família?
A espada já estava na
altura da garganta. A decisão estava tomada. Porém, Paulo não permitiu que
aquele homem consumasse seu intento suicida.
Assustado, prostra-se
diante de Paulo e Silas e pergunta: “Senhores,
que é necessário que eu faça para me salvar?”
(v.30). Que resposta os pregadores modernos dariam? Quantas campanhas ele teria
que fazer? Em quantos “encontros” teria que ir? Quanto custaria?
Somente a falta de escrúpulos faria com
que alguém se aproveitasse do momento de desespero do seu semelhante para obter
algum lucro. Aquela pergunta feita às pessoas erradas custar-lhe-ia muito caro.
Paulo é curto e elegante: “Crê no
Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa” (v.31).
Só isso? Não há
sacrifícios financeiros a serem feitos? Sem barganhas? Sem lugares sagrados
para frequentar? Basta crer? Tem certeza disso? Então, por que a gente
complica? Por que vergonhosamente burocratizamos o reino de Deus?
Já ouvi de alguns que
se Jesus é o caminho, alguns ministérios são o pedágio. Triste constatação. Se
Paulo e Silas dessem qualquer outra resposta, eles se assemelhariam aos que
lucravam em cima daquela jovem a quem haviam libertado.
A salvação daquela família não se daria
por tabela. Não é o fato de alguém ser salvo que garantirá que toda a sua
família igualmente o seja. Nem será uma “palavra profética” que vai mudar isso.
O texto diz que o carcereiro os tirou para fora, dando-lhes a oportunidade para
que lhe pregassem “a palavra do Senhor, e
a todos os que estavam em sua casa” (v.32). E tem gente achando que vai
salvar sua família através de um voto mirabolante, enviando os nomes de seus
familiares a um monte qualquer. Parafraseando Paulo, como serão salvos se não
crerem, e como crerão se não houver quem lhes pregue o evangelho?
Que garantia há de que nossos familiares aceitarão a mensagem? Haveria alguma
maneira de contribuirmos para isso?
Ora, um homem que trabalhasse naquele
ofício costumava ser duro, bruto, sem muita afetuosidade. Provavelmente, sua
mulher e filhos já estavam acostumados ao seu modo de ser. Lidar com presos
todos os dias o deixara assim. Tão logo recebera a palavra, algo mudou em seu
ser. Creio que foi isso que chamou a atenção de sua família, fazendo com que se
abrisse igualmente à Palavra.
Leia
atentamente o que diz o texto:
“E, tomando-os ele consigo naquela mesma hora da
noite, lavou-lhes os vergões; e logo foi batizado, ele e todos os seus. E, levando-os à sua casa, lhes pôs a mesa; e, na sua
crença em Deus, alegrou-se com toda a sua casa” (vv.33-34).
A família ficou
impressionada. A mulher não o reconheceu. Como um homem considerado cruel por
muitos agora se dispunha a cuidar de feridas que ele mesmo abrira? E não
somente isso: ele também fez questão de lhes pôr a mesa, atribuição geralmente
dada às mulheres.
É verdade que quando
somos regenerados, tornamo-nos novas criaturas, de sorte que as coisas velhas
já passaram. Todavia, devemos cuidar para que isso não seja entendido de
maneira equivocada. Mesmo convertido a Cristo, as feridas abertas por ele ainda
sagravam e careciam de ser cuidadas. Não podemos, simplesmente, ignorar nossa vida
pregressa como se não houvesse nada que devêssemos fazer para consertar alguns
erros que ficaram para trás. O que levou Jesus a declarar que a salvação havia
chegado à casa de Zaqueu foi sua determinação inusitada de devolver o que até
então havia extorquido de seus concidadãos. Tal atitude evidenciou sua
conversão.
O
fato de Deus nos
haver perdoado os pecados cometidos lá trás, não significa que não haja
nada
que devamos fazer para atenuar o sofrimento que causamos a outros. Ver o
pai
cuidar daquelas feridas e ainda servir à mesa tocou profundamente no
coração de
toda a família. Nascia ali uma das mais poderosas igrejas iniciadas por
Paulo. Devemos à sua existência a epístola aos Filipenses, que nos
brinda com o texto que relata gloriosamente a kenósis de Cristo, isto é, Seu esvaziamento e exaltação (Fp.2).
Hoje as pessoas
aceitam a mensagem do evangelho por causa das vantagens que lhes são prometidas
por pregadores famigerados. Adesões ocorrem no lugar de conversões autênticas.
As pessoas seguem suas vidas intactas, desejando serem servidas sem jamais
precisarem servir.
Quando o dia
amanheceu, os mesmos magistrados que haviam ordenado a sua prisão mandaram revogá-la.
O carcereiro foi quem deu a notícia: - Agora vocês podem ir em paz!
Ora, se houvessem
fugido quando ocorreu o terremoto, eles teriam sido privados do alvará de
soltura e passariam o resto da vida como foragidos da justiça.
Surpreendentemente,
Paulo não aceitou a oferta feita pelos magistrados. Sentindo-se insultado,
Paulo replica: “Açoitaram-nos
publicamente e, sem sermos condenados, sendo homens romanos, nos lançaram na
prisão, e agora encobertamente nos lançam fora? Não será assim; mas venham eles
mesmos e tirem-nos para fora” (v.37).
Quanta ousadia! Pode
parecer que Paulo estivesse sendo motivado por um tipo de soberba. Porém, o que
ele queria era preservar sua reputação a fim de que a credibilidade de sua
mensagem não fosse danificada. Os magistrados tiveram que vir pessoalmente e
implorar que Paulo e Silas aceitassem a oferta de liberdade.
O maior prejuízo sofrido pela igreja moderna não é a perda da relevância, mas da credibilidade. E para resgatá-la, não podemos negociar com os poderes deste mundo. Que sejamos achados fiéis, dignos do evangelho de que somos portadores.
Um comentário:
Olá Paulo.
Essa situação estabeleceu uma contradição muito doida. Um líder religioso que, em nome de Deus, enriquece tomando dinheiro de pobres diabos (vendendo terrenos no céu e outras indulgências comerciais), certamente não acredita na existência de Deus. Caso acreditasse, não teria a coragem de cometer tantas vigarices em seu santo nome.
Antonio Guedes
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