segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O Cristo da nossa fantasia


Por Hermes C. Fernandes

Uma das passagens mais misteriosas do Novo Testamento é a que narra o encontro entre Jesus e dois dos Seus discípulos no caminho de Emaús. O que chama mais a atenção neste episódio é o fato de eles não O reconhecerem de primeira mão. O que os impediu, afinal? Ainda que fossem discípulos novatos, provavelmente já haviam estado com Ele o suficiente para reconhecê-lo. Em vez disso, travaram um diálogo onde demonstraram o quão frustrados estavam pelo fim fatídico que havia tido o seu mestre três dias antes.

Jesus se aproxima como se fosse um peregrino qualquer. Propositadamente, não se apresenta. Apenas pergunta do que se lamentavam. Eles o respondem grosseiramente: És tu só peregrino em Jerusalém, e não sabes as coisas que nela têm sucedido nestes dias” (Lc. 24:18)?

O texto diz que eles estavam como que com os olhos vendados, de sorte que não pudessem identificar o próprio mestre. Como explicar isso?

Certamente, o que os mantinha neste estado era a própria fantasia que haviam construído acerca de Jesus. Eles mesmos confessam: “...esperávamos que fosse ele o que remisse Israel; mas agora, sobre tudo isso, é já hoje o terceiro dia desde que essas coisas aconteceram” (v 21).

Antes de condená-los, devemos considerar que esta era a mesma expectativa fantasiosa dos demais discípulos. Portanto, não era a Cristo que seguiam, mas a uma projeção de suas angústias e anseios. Para eles, Jesus deveria ser o estadista que comandaria a rebelião que tiraria Israel de sob o domínio romano e restauraria a sua soberania como nação. Há quem acredite que a intenção de Judas ao entregá-lo às autoridades era que Ele se revelasse e promovesse um levante contra Roma. O tiro parecia ter saído pela culatra. Suas fantasias desvaneceram. Nada do que sonharam ocorreu.

Deus não tem compromisso com nossas agendas particulares. Ele tem Sua própria agenda. Seus caminhos não são os nossos caminhos, nem seus pensamentos coincidem com os nossos. Que Ele é fiel, ninguém duvida. Mas fiel a quê? Fiel aos Seus propósitos e não aos nossos caprichos.

Semelhante àqueles discípulos, muitos em nossos dias estão seguindo a uma projeção a quem identificam como Cristo. Confundem a proposta do evangelho com ideologias políticas, e o reino de Deus com projetos de poder. Por isso, não reconhecem Cristo onde verdadeiramente Ele Se manifesta. Outros confundem Cristo com um gênio da lâmpada, cobrando d'Ele promessas que jamais fez. 

Não percam seu tempo buscando-o nos credos e confissões. Tampouco nas estruturas denominacionais rígidas e cheirando a mofo. Ele é encontrado no caminho, no chão empoeirado da existência.

Percebendo a ignorância daqueles discípulos, pacientemente começou a abrir-lhes as escrituras, apontando os trechos que afirmavam tudo o que Ele teria que passar. Ainda assim, apesar de seus corações arderem ante a exposição da Palavra, seus olhos se mantinham cerrados.

Conhecimento das Escrituras não garante que nossos olhos espirituais estejam abertos. Decorar versículos não evidencia intimidade com o Deus revelado na Palavra.

Quando já estavam chegando à sua casa, Jesus fez como quem prosseguiria viagem. Eles, porém, insistiram para que ficasse com eles aquela noite.

Quando estavam à mesa para a refeição, Jesus tomou o pão e repartiu-o com eles. Seus olhos, então, se abriram. Mas, subitamente, Ele desapareceu diante deles.

Ora, se Jesus houvesse feito algo sobrenatural diante deles enquanto caminhavam, eles certamente O teriam reconhecido. Em vez disso, Jesus preferiu expor-lhes as Escrituras. Ele só fez algo miraculoso depois de O terem reconhecido. Imagine o susto que levaram quando Ele simplesmente desapareceu ante seus olhos!

Nenhum dos milagres feitos por Jesus tinha a intenção de provar quem Ele era. O que o movia a realizá-los era a compaixão. Penso que Ele não mudou Seu jeito de ser. Não consigo imaginar Jesus fazendo sensacionalismo em cima dos milagres como vejo alguns de Seus supostos representantes fazerem hoje na TV. Pelo contrário. Ninguém era tão discreto quanto Ele, a ponto de pedir que os curados não espalhassem o que lhes sucedera.

O mundo não reconhecerá a presença de Cristo entre nós através de nossas performances circenses. Ele O reconhecerá em nós da mesma maneira como aqueles dois O reconheceram à mesa: no partir do pão.

Um pequeno gesto de amor pode fazer cair muitas vendas. Quando os cristãos se dispuserem a repartir o que têm recebido, todos saberão que Ele está entre nós, tão vivo quanto naquele dia em que ressuscitará dentre os mortos.

Ed René Kivitz - Orfãos