terça-feira, 7 de abril de 2015

Um por todos, mas cada um por si!


Por Hermes C. Fernandes


O coração dos três estava a mil. Da última vez que foram destacados dos demais, algo extraordinário aconteceu.

- O que será que nos espera desta vez?  Pergunta um deles.

- Haveria glória maior do que aquela? Pergunta outro.

- Hum... mas Ele andou pedindo ao Pai que lhe restituísse a glória que tinha antes da fundação do mundo... será que se trata disso? Como poderemos fitar nossos olhos? Da outra vez já foi tão difícil... Concluiu Tiago.

- Só não entendi este lance de trazermos espadas... Ele nunca nos pediu para andar armados. Refletiu João. 

- Bem pensado, João. Mas fale baixinho pra Ele não ouvir...  Espero que não demore... estou caindo de sono. Sussurrou Pedro.

- Eu também. Disseram em uníssono Tiago e João, apelidados por Jesus de “filhos do trovão”.

De repente, Jesus interrompe a caminhada, dirige-se a eles e diz em tom dramático:

- Ok rapazes!  Chegamos. Estou profundamente deprimido.  Não quis dizer aos outros, porque sei que ficariam desapontados.  Mais do que nunca, preciso de vocês por perto, me apoiando. Vou um pouco adiante porque preciso ficar só com o meu Pai. Enquanto isso, fiquem aqui de prontidão em oração.

Quando Jesus se afastou um pouco, eles começaram a comentar entre si:

- O que será que Ele está esconde de nós? Nunca vimos Jesus assim...

O tempo foi passando, as vistas começaram a pesar e eles adormeceram.

Tocados por Jesus, acordaram assustados esperando assistir a um espetáculo semelhante ao que assistiram tempos antes. Mas se decepcionaram. Da vez anterior, estarrecidos com o espetáculo da transfiguração, mantiveram os olhos arregalados em todo o tempo. Pedro chegou a sugerir que fossem construídas três tendas para abrigar a Jesus e os dois profetas que lhes apareceram. Mas desta vez, o sono os vencera. Jesus os chama e os repreende por estarem dormindo num momento tão crucial de Sua vida.

- Vocês não podem vigiar e orar comigo pelo menos por uma hora? Será que não percebem a gravidade da situação? Preciso que se mantenham de prontidão.

Aparentemente despertos, sinalizaram como se houvessem entendido o apelo do Mestre. Porém, tão logo Jesus Se afastara novamente, tombaram dormindo, pois pensavam com os seus botões: hoje não haverá espetáculo.

Pelo jeito, esses “três mosqueteiros” às avessas fizeram escola. Dois mil anos passados e ainda somos tão suscetíveis à cultura do espetáculo ao passo que somos tão indiferentes ao sofrimento alheio. Apatia crônica é o diagnóstico de nossa espiritualidade. Almejamos a transfiguração, mas jamais a desfiguração. Queremos Sua divindade, mas não Sua humanidade. Seu poder, jamais Sua fraqueza. Sua sabedoria, não Sua loucura.

Foi necessário que Deus levantasse um D’Artagnan para chamar a atenção da igreja, despertando-a da letargia (Ef.5:14).  Paulo, aquele que sequer se considerava digno de ser chamado “apóstolo” (1 Co.15:8-10), destaca a loucura de Deus como mais sábia que a sabedoria humana, e a fraqueza de Deus acima da força humana (1 Co.1:25).

Foi este quarto mosqueteiro que enxergou na cruz um espetáculo muito maior que qualquer transfiguração gloriosa. Mesmo tendo tido a experiência de encontrar Jesus no caminho de Damasco, cuja glória foi capaz de cegá-lo, Paulo determinou em seu coração a ninguém anunciar senão a Cristo, e este crucificado (1 Co.2:2). E não apenas isso: ele se achava privilegiado por participar das aflições de Cristo (Cl.1:24). A cruz de Cristo era a sua própria cruz. Enxergá-lo lá era o mesmo que enxergar-se na mesma cruz (Gl.2:20). Não havia do que se envergonhar! A fraqueza de Deus é Sua maior demonstração de poder. A lógica divina subverte a lógica humana. De sorte que os últimos são os primeiros. Quem quiser ser o maior, deve ser o menor. Foi a partir desta lógica subversiva que Paulo concluiu:
"Por isso sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então sou forte." 2 Coríntios 12:10
Já ouvi pregadores afirmando que Cristo não deseja ser visto “nos dias da sua carne”, mas em Seu estado de glória. Baseiam-se erroneamente numa passagem em que lemos que “a ninguém conhecemos segundo a carne, e, ainda que também tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, contudo agora já não o conhecemos deste modo”(2 Co.5:16). A questão aqui não é “Cristo nos dias de Sua carne”, e sim obtermos um conhecimento meramente carnal do mesmo. Pode-se, inclusive, enxergá-lo em Sua glória, porém, de maneira carnal. Portanto, não se trata de Ele estar “em carne” ou “em glória”, e sim, de compreender Sua mensagem de maneira carnal (centrada no meu “eu”) ou espiritual.

Voltemos ao Getsêmane:

Enquanto dormiam, Jesus começou a desfigurar-se. Sua agonia era tão grande que Seus vasos sanguíneos se romperam fazendo com que Seus poros jorrassem sangue.

Se no episódio anterior eles puderam vislumbrar Sua divindade, agora perdiam a oportunidade de enxergá-lo na plenitude de Sua humanidade. Quem antes Se transfigurara ante seus olhos, agora Se desfigurava ante os olhos do Pai.

Nunca Jesus Se sentira tão só. Não havia plateia para aquele espetáculo mórbido. Apenas o Pai o ouvia, porém, Seu pedido não podia ser atendido. O que estava em jogo era o destino de toda a criação. Atendê-lo em Sua súplica seria o mesmo que entregar o universo à sua própria sorte.

- Pai, se for possível, passa de mim este cálice...

Pausa na respiração.

- Mas que seja feita a Tua vontade, não a minha.

O que desfigurou o semblante de Jesus não foram os socos e pontapés recebidos dos guardas do Sinédrio e dos romanos, mas Sua tristeza.  Se o coração alegre aformoseia o rosto, o que não faz um coração amargurado?

As primeiras gotas de sangue que pagariam por nossa redenção não foram derramadas no Gólgota, mas no Getsêmane. Não foram resultado das perfurações dos cravos ou da coroa de espinho, ou das chicotadas, mas resultaram da luta hercúlea travada entre Sua carne e Seu Espírito. Conforme Ele mesmo disse aos Seus discípulos numa das vezes em que os repreendera: O espírito na verdade está pronto, mas a carne é fraca.

Sua carne tinha que render-se à vontade do Espírito.

Luta diferente era travada entre os três que acabaram se rendendo ao sono. Até que Jesus os acordou pela terceira vez.

- Agora é tarde! Não há mais o que fazer. Lá vem o traidor...

Pedro levantou-se assustado, notou a aproximação de Judas que se fazia acompanhar por guardas do Sinédrio e pensou consigo:

- Posso me redimir através de um gesto heroico. Ele nem vai lembrar que estive dormindo quando mais precisou de mim. Afinal, Ele não teria nos pedido que trouxéssemos espadas se não tivéssemos que usá-las...

Num rompante, o pescador galileu desembainhou a espada e golpeou um dos soldados com a clara intenção de matá-lo. Por sorte, por estar ainda sonolento, seu reflexo falhou e, em vez de acertar o pescoço, atingiu a orelha do soldado e a decepou.

Com a saliva de Judas ainda no rosto, Jesus agachou-se, tomou a orelha decepada e a colocou no lugar. Este, por sinal, foi Seu último milagre antes de ser crucificado.

Só deu tempo de dizer a Pedro:

- Guarda esta espada, rapaz! Quem com ferro fere, com ferro será ferido!

O que Jesus espera de cada um de nós não são atos heroicos, nem rompantes de valentia, mas tão-somente constância, companheirismo, empatia, engajamento.

Horas depois, o mesmo Pedro O negaria por três vezes no pátio onde aguardava o julgamento de Jesus. Os mesmos que hoje se digladiam por um espaço sob os holofotes da mídia, quando as luzes se apagam são os primeiros a negar tudo quanto afirmam defender.

Não se pode oscilar entre heroísmo e indiferença, valentia e covardia. Há que se buscar uma espiritualidade pautada na constância, que não careça de tocar alarde, de chamar a atenção para si. Aquele tipo de engajamento indiscretamente discreto, em que a mão esquerda ignore o que faça a direita.

Quando falo sobre isso, alguns me contestam afirmando que como luz devemos ser colocados em lugar de destaque a fim de iluminar todo o ambiente. Ok. Mas a luz não chama a atenção para si, e sim para o objeto que pretende iluminar. Assim como o sal realça o sabor da comida. Se salgar demais, estraga. É a isso que chamo “engajamento indiscretamente discreto”.

Não precisamos sair por aí comprando briga com qualquer segmento do qual discordemos. Mantenhamos a espada na bainha. Chega de decepar orelhas! Chega de violar o direito do outro, impondo nossa própria moral. Se tivermos que lutar, que seja pelo bem comum e não pelo nosso próprio bem. E que, em vez de espadas afiadas na lima ideológica, usemos tão-somente a espada do Espírito que é a Palavra de Deus, lembrando que a mesma, por possuir dois gumes, corta tanto para lá quanto para cá. 

Fonte: Blog de Hermes C. Fernandes