quinta-feira, 17 de julho de 2014

Ossos do ofício: a múmia que carregamos em nossa jornada


Por Hermes C. Fernandes


A expressão “ossos do ofício” é usada comumente quando nos referimos às dificuldades de uma determinada atividade. Por exemplo: por trás de todo glamour que envolve a medicina, o contato diário que o médico tem com portadores de doenças contagiosas pode ser considerado como ossos do ofício.  

A origem desta expressão é inusitada. Diz-se que antigamente utilizava-se pó de tutano para obter o tom alvo das folhas de ofício. O tutano é uma substância encontrada no interior dos ossos e era conhecido por suas propriedades alvejantes. Como esse processo de branqueamento era lento e trabalhoso, convencionou-se chamar de “ossos do ofício” toda e qualquer atividade que oferecesse alguma dificuldade para o exercício pleno de uma profissão.

Toda e qualquer atividade tem seus "ossos". Porém, alguns desses "ossos" são completamente desnecessários. Pesos extras que carregamos nos ombros e que acabam por retardar nossas caminhada.

Quando Moisés retirou o povo do Egito, lembrou-se de que quatro séculos antes um juramento havia sido feito entre José e seus irmãos: seus ossos não poderiam ficar no Egito depois que o Senhor removesse de lá o Seu povo para introduzi-lo na terra que prometera a Abraão, Isaque e Jacó.

Se já é difícil carregar um caixão desde a capela até o túmulo, imagine ter que carregar um sarcófago egípcio bem mais pesado que um caixão por quarenta dias pelo deserto. Este era o tempo estimado da jornada entre o Egito e a Terra Prometida. O que Moisés jamais poderia supor é que, em vez de quarenta dias, a jornada duraria quarenta anos. Quantos se interessariam de ser voluntários para carregar os ossos de José? Por mais que ele tenha sido o instrumento usado por Deus para prover a subsistência daquele povo em seus primórdios, não duvido que não raras vezes alguém tenha sugerido a Moisés que largasse seus restos mortais no meio do caminho. Mas juramento é juramento. Aquela múmia teve que acompanhá-los até que atravessassem o Jordão e pisassem na terra da promessa.

De maneira semelhante, muitos têm carregado um "peso morto" durante sua peregrinação existencial. A caminhada, além de longa, se torna insuportavelmente pesada. Esses "ossos" podem representar um padrão de comportamento, resquício de nosso velho homem, que deveria ter sido sepultado juntamente com ele no batismo, porém, teima em nos assombrar. Podem ser uma palavra que ouvimos lá trás e que ainda repercute em nosso coração, minando nossas energias e sobrecarregando-nos de expectativas fantasiosas e sobrehumanas. Podem ser um paradigma que precisa ser rompido. Um vício que deveria ter sido abandonado. Um hábito que ainda não foi desarraigado. Um ciclo que se retroalimenta. Mesmo que jamais nos tire da rota, no mínimo retardará nossa caminhada.

Diferentemente de José, Miriam e Arão, ambos irmãos de Moisés que tiveram participação importante na retirada dos hebreus do Egito, morreram a caminho de Canaã, e ali mesmo, onde morreram, foram sepultados. Nenhum deles deu trabalho extra para o seu povo como o fez José. O próprio Moisés, apesar de sua liderança inquestionável, morreu também no caminho, faltando pouquíssimo para adentrarem a terra prometida. Moisés nem sequer deu trabalho para que o sepultassem. Deus mesmo o sepultou e seu túmulo jamais foi encontrado. Nenhum mausoléu foi construído em sua memória. Todavia, o legado que deixou à humanidade jamais se perderá. 

Que ninguém tenha que se ocupar de carregar o que restar de nós. Que em vez de um peso a ser carregado pelas próximas gerações, deixemos uma chama que lhes caberá manter acesa até que adentremos à era prometida. Que sejam depositárias de nossos sonhos e não de nossos ossos. Que perpetuem nossas virtudes, jamais nossos vícios, nossa paixão pelo bem comum e não nossos interesses mais vis.