sábado, 5 de setembro de 2015

O dia é um escândalo, a noite é um segredo.




"O dia é um escândalo, a noite é um segredo. De dia, vê-se o que há, de noite o que se sonha. De dia, vêem-se os palácios, as cidades, a pompa, o luxo e a soberbia dos homens.' A noite cobre com sua mão invisível o espetáculo de nossa grandeza para que possamos levantar-nos um pouco sobre a nossa miséria. O dia apresenta-nos por toda parte a opulên-cia, o luxo, os sorrisos equívocos, os olhares atrevidos, as vestes brilhantes: numa palavra, a superfície de nosso ser nos vai dizendo a cada passo: "Eis aqui o homem." A noite, desatando o fio misterioso de nossos sentimentos e de nossas idéias, nos diz: "Eis aqui a alma." De dia, vê-se a terra; de noite, o céu. De dia trabalha-se, de noite vive-se. De dia o negócio, a oficina, o colégio; de noite, o amigo, o amante, a família. O dia fêz-se para a matéria, a noite para o espírito. De noite é quando o homem se encontra frente a frente consigo mesmo. De noite é quando faz suas terríveis visitas o remorso; de noite é quando as recordações se levantam da sepultura do esquecimento como sombras evocadas por uma conjuração; de noite é quando o homem se adivinha, sente-se, fala consigo mesmo e se reconhece.
A noite é um espelho no qual se olham tranqüilamente os corações perversos.
De noite joga com nossos espíritos essa multidão de idéias incompreensíveis que vagam pelo mundo misterioso da inteligência, sem haver encontrado ainda a sua forma.
De noite, por fim, é quando a alma se levanta sôbre^a terra, como o perfume sobre as folhas.
De dia vegeta-se, de noite medita-se.
O homem disfarça-se, ao amanhecer, de vizinho, de cidadão, de autoridade, de escritor, de artesão, de amigo, de amante, de vagabundo, de safado, ou de banqueiro.
Por isso de dia tudo se converte em brincadeiras, brigas, enganos, algazarra, tumulto, confusão, brilho e movimento. De noite, tira o disfarce e fica o homem. Por isso, de noite, tudo é sério, silencioso e solene."
JOSÉ SELGAS