segunda-feira, 30 de junho de 2014

A gente não é feito pra acabar!

 


Por Hermes C. Fernandes
Durante estes dias de Copa do Mundo, o Brasil se transformou numa enorme caldeira cultural. Gente de todas as línguas e matizes culturais convivendo pacificamente nos mesmos espaços urbanos. Os mais curiosos se perguntarão: de onde vem tal variedade cultural? Ou ainda: de onde procede o fenômeno cultural? 
A vocação primordial do homem é a de cultivar a terra. O texto sagrado diz que o Criador tomou o homem a quem criara à sua imagem e semelhança e o pôs no Jardim do Éden, incumbindo-lhe de guardá-lo e cultivá-lo (Gênesis 2:15). Surgia aí a cultura. A própria etimologia da palavra encerra este significado. “Cultura”do latim colere, que significa cultivar. Portanto, a cultura surge a partir da dinâmica da interação do homem com o meio em que está inserido. A cultura, portanto, abrange toda a produção de conhecimento, crenças, arte, moral, lei, costumes e todos os hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade, e geralmente deixados para as gerações posteriores.
 A agricultura foi o ponto de partida desta interação entre o homem e o ambiente. Todavia, ela se intensificou à medida que o homem foi descobrindo novas demandas. Por exemplo, tomando a referência bíblica como base, quando se percebeu nu, o homem coseu folhas de parreira, uma das árvores que ele cultivava no jardim. Deus, entretanto, preparou-lhe uma vestimenta de pele de animal. Surgia, então, a espiritualidade, parte essencial da cultura humana.  A espiritualidade surge a partir da reflexão acerca da finitude da vida. Os antropólogos identificam a emergência da espiritualidade na raça humana com o tratamento dispensado aos mortos. Desde que começou a vislumbrar a possibilidade da vida após a morte, o homem passou a sepultar seus mortos de maneira reverente. Em vez de abandoná-los para serem devorados pelas feras, passou a enterrá-los em covas, acompanhado de flores e objetos de uso pessoal. A cultura, então, toma um rumo inusitado, pois não se resume à interação com o meio, mas também à resposta que se dá à existência, revestindo-a de sentido e significado. A vida deixa de ser vista como um acidente e passa a ser encarada como cheia de propósito. As folhas de parreira são substituídas por vestes feitas da pele de um animal sacrificado. Era a resposta do homem à inexorável sentença da morte: a gente não foi feito para acabar!
Duas cosmovisões começam a se digladiar entre si. Uma tem como arquétipo a figura de Caim, o primogênito de Adão. A outra, a figura de Abel, seu segundo filho. Caim, o agricultor, representa a fase em que a humanidade deu seus primeiros passos na composição de sua cultura. O que importava era a sobrevivência num mundo hostil, cheio de cardos e espinhos. Diferentemente da Adão, seu pai, que representa o estágio em que o homem vivia da coleta daquilo que encontrava. Abel, seu irmão, era pastor de ovelhas, e representa o desenvolvimento da prática pecuária. Neste estágio, o homem deixa de se preocupar exclusivamente com sua sobrevivência e passa a considerar assuntos relativos à transcendência. A interação entre as duas cosmovisões nem sempre foi amistosa. Todos  conhecemos o desfecho desta história. Caim mata Abel. Foragido, cabe a ele a construção da primeira cidade. Portanto, a civilização nasce daí, do conflito, da fuga e do desejo de estabelecer-se. Caim representa a humanidade que se assenta nos lugares férteis, geralmente próximos de grandes rios e ali edifica seus centros urbanos. Abel representa a humanidade em trânsito, nômade, hebreia, em busca do horizonte. Se esta aspiração houvesse terminado com Abel, talvez ainda estivéssemos às margens do Eufrates. Porém, Abel sai de cena e dá lugar a Sete, dando prosseguimento à saga daqueles que não têm cidade permanente, mas buscam a que se insinua no lugar onde nasce o sol, a cidade do futuro (Hb.13:14).
Desde então, a humanidade tem estado dividida entre dois grupos. Os que almejam a manutenção das coisas exatamente como são. E os que acenam para o futuro, desejando-o, não como repetição de uma história cíclica, mas como algo novo e inusitado. O primeiro grupo tende a produzir uma cultura estática, que valoriza, sobretudo, as tradições, sem ao menos contestá-las e colocá-las à prova. O segundo grupo tende a produzir uma cultura dinâmica, condenada a reformular-se constantemente. Para uns, a era áurea se encontra no passado. Para outros, o melhor ainda está por vir. Uns sonham voltar para o paraíso. Outros sonham com a Nova Jerusalém, arquétipo da civilização do reino de Deus. 
Para os que seguem o que chamo de paradigma caímico, a cultura se resume no que se produz para o próprio consumo. Para estes, a gente é feito pra acabar. Esta sentença nos persegue por toda a existência. Portanto, aproveitemos ao máximo o tempo de que dispomos. Mas para os que seguem o paradigma abélico, a cultura é o rastro que se deixa para os que virão depois. É a pista de que passamos por aqui. É a sinalização da estrada aberta e pavimentada pelos que nos antecederam. A cultura é, por assim dizer, o que restou de nós. Nossas paixões. Nossos sonhos. Nossos amores. Nossos temores. Tudo fica espalhado pela estrada na qual transitamos durante nossa peregrinação existencial, indicando aos que virão qual o melhor caminho a seguir e qual deve ser igualmente evitado.