sexta-feira, 4 de julho de 2014

O "evangelho das vantagens" e as vantagens do Evangelho

 


Por Hermes C. Fernandes

Já foi o tempo em que a mensagem do evangelho expunha as vísceras dos interesses mesquinhos de grupos que se aproveitavam da ignorância alheia para lucrar. Com a aproximação da igreja com os poderes constituídos, o teor subversivo de sua mensagem foi prejudicado, de sorte que as eventuais perseguições sofridas deixaram de ser pelas razões originais. Se antes era perseguida por denunciar as injustiças e proclamar a chegada do reino de Deus, conclamando os homens a se arrependerem de seus maus caminhos, hoje é perseguida pelo flagrante disparate entre a mensagem original de seu fundador e sua prática abominável. A igreja deixou de ser um instrumento usado por Deus para sabotar o sistema para tornar-se numa engrenagem do mesmo.

Diferentemente de apóstolos atuais, presos por esconder dinheiro não declarado em suas bíblias, Paulo e Silas forma encarcerados por haverem libertado uma jovem que, possuída por um espírito demoníaco, seguia-os oferecendo-lhes propaganda gratuita de seu ministério. Eles se recusaram a lucrar em cima de alguém já tão explorado por religiosos inescrupulosos da cidade de Filipos. Que diferença entre eles e aqueles que hoje vivem e se locupletam da desgraça alheia!

O texto sagrado diz que “vendo seus senhores que a esperança do seu lucro estava perdida, prenderam Paulo e Silas, e os levaram à praça, à presença dos magistrados. E, apresentando-os aos magistrados, disseram: Estes homens, sendo judeus, perturbaram a nossa cidade, e nos expõem costumes que não nos é lícito receber nem praticar, visto que somos romanos” (At.16:19-21).

É claro que ninguém em sã consciência admitiria que a razão pela qual exigia a prisão de alguém seria o prejuízo sofrido. Para todos os efeitos, aqueles judeus intrometidos eram perturbadores da ordem pública. Não houve sequer quem se prestasse a testemunhar em favor deles.

De benfeitores aclamados pela população, Paulo e Silas passaram a ser vistos e tratados como inimigos de alta periculosidade. Além dos muitos açoites, foram lançados na prisão, no cárcere interior, o que equivalente ao que hoje chamamos de prisão de segurança máxima, e ainda por cima, prenderam seus pés no tronco. É assim que deve ser tratado quem ouse insurgir-se contra o sistema. Eles não roubaram ninguém. Não atentaram contra vida alguma. Apenas libertaram aquela cuja condição espiritual dava lucros absurdos a seus senhores.

Paulo e Silas tinham todas as razões do mundo para estarem amargurados, murmurando e questionando a Deus pelo castigo injusto que recebiam. Em vez disso, próximo da meia-noite, eles oravam e cantavam hinos a Deus, e, mesmo isolados dos demais, tinham a sua audiência. 

Repentinamente, sobreveio um tão grande terremoto que sacudiu os alicerces do cárcere, provocando a abertura de todas as celas e o rompimento dos grilhões e algemas. Repare nisso: todos os presos ficaram virtualmente soltos. A liberdade estava a poucos passos de atravessar o portão principal da prisão. O aparente livramento não veio só para os que oravam e louvavam, mas para todos.


O carcereiro ficou desesperado, pois sabia que se não contivesse a fuga dos prisioneiros, ele e toda a sua família seriam considerados traidores e consequentemente condenados à morte. A única maneira de evitar isso era tirando a própria vida. Se as autoridades o encontrassem morto, pensariam que os amotinados o teriam assassinado e isso certamente pouparia sua família da execução.

Na mentalidade predominante no mundo, uns ganham, outros perdem. A vitória de alguns representa o fracasso de outros. Mas na mentalidade do reino de Deus, ninguém precisa perder para outro ganhar. O bem comum está sempre acima do bem particular. Paulo e Silas podiam aproveitar o momento para fugir, sem se importarem com o que aconteceria àquela família.

Como que num lampejo, Paulo finalmente entendeu a razão pela qual Deus permitira tal injustiça sofrida por ele e seu colega. Havia ali um homem a quem Deus desejava alcançar.

No afã de impedir que ele cometesse suicídio, Paulo clamou com grande voz, dizendo: Não te faças nenhum mal, que todos aqui estamos” (At.16:28).

Quem poderia imaginar que Paulo e Silas, presos considerados de alta periculosidade, fossem capazes de conter aquela fuga? O que conferiu-lhe tal credibilidade junto aos presos? Por que o obedeceram, abrindo mão da liberdade?

Há quem veja o terremoto como o grande milagre descrito nesta passagem. Sinceramente, para mim aquele terremoto não passou de um fenômeno natural como outro qualquer. Terremotos eram frequentes naquela região. O verdadeiro milagre foi Paulo impedir que os presos fugissem.

Aqueles homens, muitos dos quais eram presos políticos, acusados de incitar a população contra o império, ouviram as orações e canções entoadas por Paulo e Silas. Duvido muito que fossem canções como as cantadas hoje em dia em muitos círculos cristãos, que incitam sentimentos rancorosos e lustram o ego humano em vez de simplesmente expressar confiança no amor de Deus.

Uma coisa é alguém de fora vir para conter um motim dentro de um cárcere. Outra coisa totalmente diferente é o motim ser contido por um dos presos, e, justamente, por aquele que não deveria estar ali.

O terremoto não veio para libertá-los da prisão, como muitos pregadores vociferam em seus púlpitos. Se assim fosse, então, concluímos que Paulo e Silas não compreenderam a mensagem.

O que vale mais, a liberdade de centenas de homens ou a preservação da vida de um chefe de família?

A espada já estava na altura da garganta. A decisão estava tomada. Porém, Paulo não permitiu que aquele homem consumasse seu intento suicida.

Assustado, prostra-se diante de Paulo e Silas e pergunta: “Senhores, que é necessário que eu faça para me salvar?” (v.30). Que resposta os pregadores modernos dariam? Quantas campanhas ele teria que fazer? Em quantos “encontros” teria que ir? Quanto custaria?

Somente a falta de escrúpulos faria com que alguém se aproveitasse do momento de desespero do seu semelhante para obter algum lucro. Aquela pergunta feita às pessoas erradas custar-lhe-ia muito caro.
Paulo é curto e elegante:Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa” (v.31).

Só isso? Não há sacrifícios financeiros a serem feitos? Sem barganhas? Sem lugares sagrados para frequentar? Basta crer? Tem certeza disso? Então, por que a gente complica? Por que vergonhosamente burocratizamos o reino de Deus?

Já ouvi de alguns que se Jesus é o caminho, alguns ministérios são o pedágio. Triste constatação. Se Paulo e Silas dessem qualquer outra resposta, eles se assemelhariam aos que lucravam em cima daquela jovem a quem haviam libertado.

A salvação daquela família não se daria por tabela. Não é o fato de alguém ser salvo que garantirá que toda a sua família igualmente o seja. Nem será uma “palavra profética” que vai mudar isso. O texto diz que o carcereiro os tirou para fora, dando-lhes a oportunidade para que lhe pregassem “a palavra do Senhor, e a todos os que estavam em sua casa” (v.32). E tem gente achando que vai salvar sua família através de um voto mirabolante, enviando os nomes de seus familiares a um monte qualquer. Parafraseando Paulo, como serão salvos se não crerem, e como crerão se não houver quem lhes pregue o evangelho?


Que garantia há de que nossos familiares aceitarão a mensagem? Haveria alguma maneira de contribuirmos para isso?


Ora, um homem que trabalhasse naquele ofício costumava ser duro, bruto, sem muita afetuosidade. Provavelmente, sua mulher e filhos já estavam acostumados ao seu modo de ser. Lidar com presos todos os dias o deixara assim. Tão logo recebera a palavra, algo mudou em seu ser. Creio que foi isso que chamou a atenção de sua família, fazendo com que se abrisse igualmente à Palavra.

Leia atentamente o que diz o texto:


“E, tomando-os ele consigo naquela mesma hora da noite, lavou-lhes os vergões; e logo foi batizado, ele e todos os seus. E, levando-os à sua casa, lhes pôs a mesa; e, na sua crença em Deus, alegrou-se com toda a sua casa” (vv.33-34).


A família ficou impressionada. A mulher não o reconheceu. Como um homem considerado cruel por muitos agora se dispunha a cuidar de feridas que ele mesmo abrira? E não somente isso: ele também fez questão de lhes pôr a mesa, atribuição geralmente dada às mulheres.

É verdade que quando somos regenerados, tornamo-nos novas criaturas, de sorte que as coisas velhas já passaram. Todavia, devemos cuidar para que isso não seja entendido de maneira equivocada. Mesmo convertido a Cristo, as feridas abertas por ele ainda sagravam e careciam de ser cuidadas. Não podemos, simplesmente, ignorar nossa vida pregressa como se não houvesse nada que devêssemos fazer para consertar alguns erros que ficaram para trás. O que levou Jesus a declarar que a salvação havia chegado à casa de Zaqueu foi sua determinação inusitada de devolver o que até então havia extorquido de seus concidadãos. Tal atitude evidenciou sua conversão.

O fato de Deus nos haver perdoado os pecados cometidos lá trás, não significa que não haja nada que devamos fazer para atenuar o sofrimento que causamos a outros. Ver o pai cuidar daquelas feridas e ainda servir à mesa tocou profundamente no coração de toda a família. Nascia ali uma das mais poderosas igrejas iniciadas por Paulo. Devemos à sua existência a epístola aos Filipenses, que nos brinda com o texto que relata gloriosamente a kenósis de Cristo, isto é, Seu esvaziamento e exaltação (Fp.2).

Hoje as pessoas aceitam a mensagem do evangelho por causa das vantagens que lhes são prometidas por pregadores famigerados. Adesões ocorrem no lugar de conversões autênticas. As pessoas seguem suas vidas intactas, desejando serem servidas sem jamais precisarem servir.

Quando o dia amanheceu, os mesmos magistrados que haviam ordenado a sua prisão mandaram revogá-la. O carcereiro foi quem deu a notícia: - Agora vocês podem ir em paz!

Ora, se houvessem fugido quando ocorreu o terremoto, eles teriam sido privados do alvará de soltura e passariam o resto da vida como foragidos da justiça.

Surpreendentemente, Paulo não aceitou a oferta feita pelos magistrados. Sentindo-se insultado, Paulo replica: “Açoitaram-nos publicamente e, sem sermos condenados, sendo homens romanos, nos lançaram na prisão, e agora encobertamente nos lançam fora? Não será assim; mas venham eles mesmos e tirem-nos para fora” (v.37).

Quanta ousadia! Pode parecer que Paulo estivesse sendo motivado por um tipo de soberba. Porém, o que ele queria era preservar sua reputação a fim de que a credibilidade de sua mensagem não fosse danificada. Os magistrados tiveram que vir pessoalmente e implorar que Paulo e Silas aceitassem a oferta de liberdade.


O maior prejuízo sofrido pela igreja moderna não é a perda da relevância, mas da credibilidade. E para resgatá-la, não podemos negociar com os poderes deste mundo. Que sejamos achados fiéis, dignos do evangelho de que somos portadores.