sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Viagens no tempo e a Bíblia - Para além das suposições


“A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente.”

Albert Einstein

Devo admitir minha surpresa com a repercussão do meu post sobre supostas alusões às viagens no tempo nas páginas da Bíblia Sagrada. O que seria apenas um exercício do que chamo de “ficção teológica” provocou reações diversas. Alguns leram-no como se fosse a explanação de uma nova doutrina ou revelação. Por conta disso, resolvi debruçar-me uma vez mais sobre o tema, e confesso que encontrei novos indícios de que o assunto não é estranho às Escrituras. Pus-me a perguntar: e se tais viagens fossem mais do que mera hipótese?

A prudência me levou a tratar os textos bíblicos que mencionei no artigo anterior como indícios, mas os que apresentarei aqui serão tratados como evidências. Nada do que aqui disser confrontará as doutrinas cardinais da fé cristã. Portanto, podem apagar a fogueira inquisitória. Não vai ser desta vez que serei condenado como herege. Então, que tal dar vasão à imaginação uma vez mais?

Para que consideremos a possibilidade de viajar no tempo, teremos que considerar que o futuro já exista e que o passado não deixou de ser. Passado, presente e futuro seriam facetas de uma mesma dimensão, a temporal, assim como altura, largura e profundida são as três dimensões espaciais. Foi Einstein que propôs que o tempo seria a quarta dimensão, desafiando e revolucionando a noção defendida pela física desde Newton. Muito antes físico alemão, Santo Agostinho percebeu a importância do tempo. Dentre suas assertivas, o bispo de Hipona diz que “o mundo não foi feito no tempo, mas sim com o tempo”, atribuindo ao tempo existência real. Apesar de toda sua intuição sobre o tema, Agostinho admite que se ninguém lhe perguntasse sobre o que é o tempo, ele saberia, mas se tivesse que explicá-lo, não saberia fazê-lo.[1]

Eclesiastes não é o único livro a tratar do tempo e de sua fugacidade (Ecl.3). Ouso afirmar que as Escrituras falem muito mais sobre o tema do que geralmente tem sido percebido. Sugiro que recorramos ao mais enigmático livro das Escrituras em busca de indícios da possibilidade de se viajar na malha temporal, tanto para frente, quanto para trás.

Segundo o testemunho de João, apesar de confinado a uma ilha no meio do Mediterrâneo, ele se achou em espírito no dia do Senhor, onde recebeu a ordem para que escrevesse sobre coisas que já haviam se passado, sobre outras que estavam ocorrendo naquele momento e ainda, sobre as que aconteceriam sem seguida.[2] De acordo com algumas traduções, João teria dito: “Eu fui arrebatado em espírito no dia do Senhor”[3]. Sem compreender o poder de Deus para transportar-nos pelo tempo e pelo espaço, muitos intérpretes dizem que a expressão “dia do Senhor” nada mais é do que uma alusão ao domingo, dia em que os crentes primitivos costumavam se reunir para adorar. Todavia, a expressão usada por João é kuriakos hēmera, cujo sentido é “Dia pertencente ao Senhor”. Expressão correlata é encontrada em I Tes. 5:2, I Co. 5:5, At.2:20, I Co. 1:8, II Co. 1:14, II Pe. 3:10. A diferença é que nestas passagens lê-se hēmera kyrius. O sentido é exatamente o mesmo. Enquanto hēmera kyrius poderia ser traduzido como “Dia do Imperador”, kuriakos hēmera seria traduzido como “Dia Imperial”. Porém, todas se referem ao Dia em que Cristo Se manifestará em glória e juízo sobre o mundo. Considerando que este dia esteja no futuro, logo, concluímos que João foi um viajante do tempo. Não sei por que da dificuldade de se entender isso. Ora, se Deus pôde arrebatar a Filipe, transportando-o de um lugar para o outro num piscar de olhos, por que não poderia igualmente arrebatar a João ou a quem quer que fosse de um tempo para o outro? Tempo e espaço são dimensões complementares, dois lados da mesma moeda. Se há a possibilidade de transporte espacial instantâneo (teletransporte), logo, também há devemos considerar a possibilidade de transporte temporal. É evidente que aqui se trata de uma viagem para o futuro. De certo modo, todos estamos viajando na mesma direção, seguindo a seta do passado para o futuro. Porém, João deu um salto do seu presente para o último dia da história. Todavia, ele não ficou por lá, mas voltou para o seu próprio tempo, fazendo o caminho inverso, isto é, uma viagem do futuro para o passado.

Alguns poderão argumentar que tal viagem tenha sido feita no espírito e não corporalmente. A palavra grega “pneuma” traduzida por espírito poderia ser identificada como “coração” ou “consciência”. Esta instância do ser é atemporal, conforme defende a psicanálise. Tal verdade ecoa nas páginas de Eclesiastes, onde lemos:“Tudo fez formoso em seu tempo. Também pôs a eternidade no coração dos homens”(Ec.3:11a). Em outras palavras, a eternidade habita a subjetividade. Penso ser perda de tempo e de recursos tentar construir uma máquina capaz de viajar no tempo. A ciência ainda se dará conta de que a tal máquina do tempo já existe. É item de fábrica com o qual já nascemos: Nossa consciência. Admitidamente, o maior mistério com o qual a ciência tem tido que lidar. Tudo o que sabemos sobre ela é uma mísera pontinha do iceberg.

Minha conclusão é que ser transportado “em espírito” para outro tempo não diminui em nada a importância do fenômeno. Não foi apenas um êxtase, um transe hipnótico ou coisa parecida.

Experiência semelhante é citada por Paulo:

“Conheço um homem em Cristo que há catorze anos (se no corpo, não sei, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao terceiro céu. E sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis, que ao homem não é lícito falar.” 2 Coríntios 12:2-4

Alguns teólogos acreditam que o homem de quem Paulo fala seria ele mesmo. Segundo o relato, este homem teria sido arrebatado catorze anos antes. Portanto, foi uma experiência histórica, passível de ser datada. O que Paulo não soube dizer era se teria sido uma experiência corpórea ou extracorpórea. Possivelmente, a sensação era de que todo o seu ser teria sido transportado e não apenas o seu espírito. Para onde ele teria sido transportado? Paulo fala de terceiro céu e o identifica com o paraíso. Logo, a primeira impressão que temos é que foi um transporte espacial, isto é, de um lugar (terra) para outro (céu).

O que seria o terceiro céu? Muitos intérpretes afirmam que o primeiro céu seria a atmosfera terrestre, o segundo céu seria o espaço sideral, e o terceiro céu seria o lugar do trono de Deus.

Sugiro uma leitura alternativa. Em vez de designações espaciais, designações temporais. Em vez de lugares, tempos.

Portanto, o terceiro céu não seria um céu acima dos dois primeiros céus, mas um tempo à frente desses. Tomo por base da minha interpretação um texto muito conhecido da segunda epístola de Pedro, segundo o qual o primeiro céu teria existido desde a criação até o dilúvio (2 Pe.3:5-6). Mais adiante, Pedro se refere aos céus atuais, que identificamos como o segundo céu: “Mas os céus e a terra de agora, pela mesma palavra, têm sido guardados para o fogo...” (2 Pe.3:7-8). Por fim, ele fala do terceiro céu ao referir-se aos “novos céus e uma nova terra, nos quais habita a justiça” (2 Pe.3:13). É digno de nota que Pedro conjuga o verbo “habitar” no presente, como se o que nos aguarda no futuro já fosse real hoje. O futuro está presente entre nós. Portanto, o primeiro céu representa a era passada. O segundo céu, a era presente. E o terceiro céu, a era futura. Logo, concluímos que Paulo fora arrebatado ao futuro. O único mistério que persiste é se foi uma experiência corpórea ou extracorpórea.

Quanto ao “paraíso”, creio tratar-se do mesmo fenômeno. O paraíso não é um lugar, mas um tempo. Não podemos apontá-lo num mapa. Ele é encontrado nas páginas das Escrituras no início da criação, e reaparece no fim, não mais como o lugar bucólico original, mas como uma cidade. Para ser arrebatado ao paraíso, teríamos que viajar no tempo, fosse para o passado, no início de tudo, ou para o futuro, quando na consumação da história.

Foi para este mesmo paraíso que Jesus prometeu levar o ladrão penitente. “Hoje mesmo”, garantiu o Salvador, “estarás comigo no paraíso”. A exemplo do que aconteceu com ele, todos quantos deixamos esta dimensão temporal, somos remetidos imediatamente ao paraíso, isto é, ao tempo em que todas as coisas são cumpridas. [4]

Retornando para o Apocalipse, logo no início do livro, encontramos Jesus Se apresentando a João como “aquele que era, que é e que há de vir”[5], o Alfa e o Ômega, que engloba em Si mesmo o passado, o presente e o futuro.   Nesta passagem, Jesus Se apresenta a João como a primeira e a última letra do alfabeto grego. Ser o Alfa e o Ômega é o mesmo que dizer que o tempo está contido n’Ele. Ele não apenas engloba em Si mesmo todas as coisas, mas também todos os tempos. Ele é o princípio e o fim. Se entrássemos numa máquina do tempo, e retrocedêssemos até o início de tudo, lá O encontraríamos. Se avançássemos até o momento derradeiro, lá igualmente O encontraríamos. Toda a História está contida n’Aquele que é o Pai da Eternidade. Toda a existência está inserida n’Ele. Como disse Paulo em seu famoso discurso aos atenienses: “Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At.17:28). Nada há fora d’Ele. “Pois nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades; tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele (...) Pois foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse, e que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos céus” (Cl.1:16-17,19). Trata-se da plenitude da criação habitando em Cristo. Céu e terra convergiram e estão contidos n’Ele. Não há existência à parte d’Ele. E não só a plenitude da criação está contida n’Ele, como também “nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl.2:9). Portanto, não há Deus fora de Cristo. A Divindade inteira está n’Ele, em quem tempo, espaço e eternidade coexistem. Ele é o habitat da Divindade e da Criação como um todo. Ele é o point cósmico, onde tudo o que existe converge.

Ao apresentar-Se como Aquele “que era, que é e que há de vir”, Cristo Se identifica como Iavé, o mesmo Deus que aparecera para Moisés na sarça ardente. No dizer do escritor de Hebreus, “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre”(Hb.13:8). Repare num detalhe intrigante: Para Ele, o ontem não passou. Se houvesse passado, o escritor teria dito que Ele era o mesmo ontem, e não que Ele é o mesmo ontem. O verbo “ser” quando aplicado à Sua pessoa é sempre conjugado no presente, mesmo quando se refere ao passado e ao futuro. Ele não será para sempre. Ele é para sempre.

Antes da encarnação, porém, Deus revelou-Se a Moisés como “eu serei o que serei”.Somente em Cristo o futuro se torna presente. Podemos dizer que, em certo sentido, Deus Se atualiza n’Ele. O escritor sagrado afirma que fomos visitados pelos poderes do mundo vindouro (Hb.6:5). Portanto, a ordem foi subvertida. O futuro nos visitou, tal qual uma agulha que volta para reforçar um ponto já dado, depois de estar no fim da costura. Em Cristo, o “eu serei o que serei” se torna no “Eu sou”, repetido em sete poderosas sentenças: Eu sou... o caminho a verdade e a vida, a luz do mundo, o pão da vida, a ressurreição e a vida, o bom pastor, a porta, a Videira Verdadeira. E em Apocalipse, o Alfa e o Ômega e a estrela da manhã.

De acordo com o rabino Nilton Bonder, em seu livro “Sobre Deus e o Sempre”, “qualquer pessoa familiarizada com a língua hebraica sabe que YHWH[6] está associado à noção de tempo, uma vez que contém o radical do verbo existir ou do verbo SER. Como a língua hebraica não declina o verbo “ser” no presente, YHWH parece ser uma mistura dos verbos “ele será, ele foi e ele é” somado ao gerúndio do verbo SER. Já outros preferem a leitura do Tetragrama como uma representação do tempo presente (HWH) sendo precedido pela partícula Y, que lhe dá um sentido futuro. Ou seja: Eu sou aquele que empurra o Presente na direção do Futuro. Nessa leitura, Deus se define como a própria força motriz do tempo (...) Em resumo, o Tetragrama seria um código do tempo.”[7]

Quando Moisés pergunta pelo nome d’Aquele que lhe aparecera no deserto no arbusto ardente, ouve uma inusitada e enigmática resposta: Ehié Asher Ehié, que significa literalmente “Serei o que serei”.[8]

Dá-se a impressão de que a ordem temporal representada pelo sistema causa-efeito é subvertida. Portanto, não é o passado que determina o presente, e sim, o futuro. Sartre parece ter acertado de raspão ao afirmar que  futuro.”

Nas palavras de Bonder, “o fazer, o existir de Deus não pertence ao sistema de causa-consequência, o que Deus faz está para além da causalidade, o que causa já é consequência e a consequência já é causa. Não há separação, ou distinção, entre intenção e resultado. O resultado já é a intenção e a intenção já é o resultado.”[9]

É esta mesma lógica quântica que encontramos em outro trecho enigmático do livro de Apocalipse:

“Aquele que tem ouvidos ouça: Se alguém há de ir para o cativeiro, para o cativeiro irá. Se alguém há de ser morto à espada, à espada haverá de ser morto. Aqui estão a perseverança e a fidelidade dos santos.” Apocalipse 13:9-10 [10]

De acordo com R.N.Champlin, em sua obra “O Novo Testamento interpretado versículo por versículo”, “o estilo epigramático da declaração deixou perplexos aos escribas (...) A ausência de um verbo com a primeira cláusula impeliu vários copistas a procurarem melhorar o texto...”  Há, pelo menos, doze variantes deste trecho do livro das Revelações. “Talvez sob a influência de declarações como Mateus 26:52, copistas modificaram, de vários modos, a difícil construção grega”. Por isso, algumas traduções em português, como a Almeida Corrigida e Revisada trazem: “se alguém leva em cativeiro, em cativeiro irá; se alguém matar à espada, necessário é que à espada seja morto”. O objetivo dos tradutores foi o melhor possível: tornar o texto mais compreensível. Considerando esta a melhor tradução, subentende-se que a intenção do escritor era advertir aos leitores a que fossem responsáveis por suas ações, pois as mesmas teriam consequências em suas vidas. Semeou, vai colher. Matou à espada, à espada será morto. Todavia, não é isso que o texto intenta dizer.

Trata-se, antes, do uso de uma expressão idiomática do hebraico: “se alguém é morto à espada, que seja morto à espada.”

Já que não faz muito sentido dentro da lógica de causa-efeito, copistas fizeram acréscimos, de modo que o texto dissesse o que ele, de fato, não pretende dizer. Sem dúvida, faz mais sentido dizer “se alguém deve ser morto à espada, à espada morrerá”. Ou ainda, “se alguém matar à espada, à espada deve morrer.” Mas em vez disso, ele diz: “Se alguém é morto à espada, que seja morto à espada.” Não se trata, portanto, de uma previsão ou advertência, mas de uma antecipação. Mais uma vez, o futuro determina o presente, não o passado.

Há algo lá na frente que nos atrai como um ímã. Se retrocedermos ao princípio de tudo, encontraremos Cristo, o Alfa, exercendo poder impulsionador, empurrando todas as coisas para frente. Se fôssemos remetidos para o futuro, lá encontraríamos Cristo, o Ômega, exercendo Seu poder atrator. É por isso que o fluxo temporal segue a direção passado-futuro. Não se pode nadar contra a correnteza. O ponto Alfa, início de tudo, impele, empurra para frente. Enquanto o ponto Ômega, que é o fim objetivo de tudo, atrai, puxa para frente.

Algo semelhante ocorre em outro texto deveras enigmático extraído do Antigo Testamento, onde Deus declara a Moisés: “Terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem me compadecer.” Geralmente se acredita que Deus estivesse apenas declarando que usaria de misericórdia com quem Ele quisesse. Porém, o fato é que, no hebraico, esse é um dos textos mais misteriosos das Escrituras. Com efeito, sua tradução ao pé da letra diz: “Trarei graça o que houver trago graça e compadecerei o que houver compadecido”. Em outras palavras, farei o que já fora feito. Era como se Deus, propositadamente, misturasse os tempos verbais futuro e passado, convidando Moisés a entrar numa dimensão atemporal, onde não houvesse distinção entre o que se foi, e o que virá a ser.

Continua...



[1] Confissões – Agostinho, Livro XI
[2] Apocalipse 1:19
[3] Apocalipse 1:9
[4] Leia nosso artigo “Kairosfera: para onde vamos ao morrer”: http://www.hermesfernandes.com/2013/08/kairosfera-pra-onde-vamos-ao-morrer.html
[5] Apocalipse 1:8
[6] YHWH – Tetragrama usado pelos judeus para referir-se a Deus e geralmente pronunciado como Iavé.
[7] BONDER, Nilton – Sobre Deus e o Sempre, pág.17
[8] Geralmente e erroneamente traduzido como “Eu sou o que sou”.
[9] Ibid id – pág. 93
[10] ει τις αιχμαλωσιαν συναγει εις αιχμαλωσιαν υπαγει ει τις εν μαχαιρα αποκτενει δει αυτον εν μαχαιρα αποκτανθηναι ωδε εστιν η υπομονη και η πιστις των αγιων/ei tis synagō aichmalōsia hypagō eis aichmalōsia ei tis apokteinō enmachaira dei apokteinō en machaira hōde esti hypomonē kai pistis hagios

Literatura Fundamental 27 - O Estrangeiro - Cláudia Amigo Pino