segunda-feira, 29 de setembro de 2014

HOMOSSEXUAIS: Seriam os eunucos da vez?


Por Hermes C. Fernandes


Nenhuma classe era tão menosprezada nos tempos bíblicos do que os eunucos. E a razão disso era muito simples: eles não podiam procriar. Fosse por razões orgânicas (costumavam ser castrados), ou por não sentirem-se atraídos pelo sexo oposto. Por conta disso, sofriam preconceito semelhante ao sofrido por mulheres estéreis. Na concepção judaica, a geração de filhos era a garantia da perpetuação da vida. A prole dava continuidade à saga da família. Na ausência destes, não haveria para quem deixar herança, que consistia não apenas em bens materiais, mas também no nome. 

A Lei era dura com relação aos eunucos. Eles nem sequer podiam entrar na congregação do Senhor (Dt.23:1). Neste mesmo capítulo, a Lei também exclui da comunidade israelita os filhos bastardos e os estrangeiros. 

Alguns pesquisadores propõem que esta exclusão pretendia apartar da assembleia da cidade os sacerdotes de deuses pagãos, dos quais muitos eram eunucos e bastardos (que por não terem direito a herança, eram entregues para o ofício sacerdotal). Enquanto Israel rejeitava completamente esses indivíduos, outras nações descobriram maneiras de aproveitá-los, envolvendo-os em atividades como o cuidado da rainha e do harém do rei.  

A primeira vez que encontramos eunucos em Israel é durante o reinado de Acabe (2 Reis 9:32). Provavelmente cuidavam de Jezabel, mulher extremamente vaidosa e malévola que introduziu vários costumes pagãos em Israel. Vemos também que havia eunucos em Judá nos dias em que Jerusalém caiu nas mãos de Nabucodonosor, rei da Babilônia (Jer.29:2). É bem provável que tanto em Israel dos dias de Acabe, quanto em Judá dos dias de Jeremias, os eunucos fossem escravos estrangeiros adotados na corte real. 

Quando o rei Ezequias recebeu os embaixadores da Babilônia, mostrando-lhes todos os seus tesouros, Isaías o advertiu dizendo que um dia eles voltariam e levariam seus descendentes para serem eunucos no palácio do rei da Babilônia (Is.39:6-7). Mas Ezequias não percebeu a gravidade e as implicações daquela profecia. Em vez disso, concluiu que se houvesse paz durante o tempo de seu reinado, então, tudo bem. Não importava o que o futuro reservasse aos seus descendentes. Ora, se estes fossem castrados, quem herdaria o trono de Judá? 

Quando Ciro II, rei da Pérsia, em 537 a.C., invadiu a Babilônia, ele libertou o povo judeu, permitindo que retornasse a Jerusalém. Muitos dos que retornaram à cidade agora eram eunucos, e de acordo com a lei de Deuteronômio, estavam destituídos de sua cidadania e, com isso, da participação política e religiosa na cidade. Porém, em Isaías (livro escrito bem antes do cativeiro babilônico) há uma revisão desta regra. O mesmo profeta que anuncia a Ezequias o que aconteceria aos seus filhos ao serem levados cativos para a Babilônia, também diz: "O estrangeiro que por sua própria vontade se uniu ao Senhor, não deve dizer: Javé me excluirá de seu povo. Tampouco deve dizer o eunuco: Não sou mais que uma árvore seca. Porque assim disse o Senhor: Os eunucos que observem meus sábados, que escolhem o que me agrada e são fiéis ao meu pacto, concederei a eles ver gravado seu nome dentro do meu templo e de minha cidade; isso é melhor que ter filhos e filhas! Um nome eterno darei a cada um deles, que nunca se apagará” (Isaías 56:3-6). A partir de Isaías, então, se cria um mecanismo que torna mais flexíveis as leis do Deuteronômio, adaptando-as a uma nova realidade existente na vida social judaica. 

Percebemos nitidamente que a graça está por trás desta “adaptação” à realidade. A Lei aponta para um mundo ideal, onde não haja homens incapazes de reproduzir. Porém, a graça lida com as demandas da realidade. A Lei acentua a distância entre o real e o ideal. A graça reverte este fluxo. Em vez de exclusão, inclusão. Em vez de distanciamento, aproximação. 

Creio que, como igreja de Cristo, temos muito que aprender com este episódio. O mundo não é o que deveria ser. Há demandas atuais que exigem posicionamento. Devemos apegar-nos às exigências da Lei ou ceder à concessão da graça? Se marcarmos a opção um, então, nossos filhos terão que ser apedrejados em caso de flagrante rebeldia. 

Nem mesmo no tempo de Jesus as pessoas sabiam lidar com a questão envolvendo os eunucos. Há conceitos que ainda hoje são difíceis de serem digeridos, principalmente pelos cristãos. Somos inflexíveis como a letra da Lei, esquecendo-nos de que a letra mata, e que somente o Espírito vivifica. Veja como Jesus lidou com o preconceito envolvendo os eunucos de sua época: 
“Ele, porém, lhes disse: Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido. Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos, por causa do reino dos céus. Quem pode receber isto, receba-o.” Mateus 19:11-12 
Ora, se Jesus estivesse falando de algo simples, aceito pelo senso-comum, não teria dito: “Nem todos podem receber esta palavra...”

Jesus elenca três tipos de eunucos: 

• “Eunucos criados pelo homem”. Castrados. Esterilizados intencionalmente. Prática fartamente disseminada na antiguidade. Geralmente castravam-se os filhos de escravos capturados na guerra, para que, ao crescerem, pudessem servir nos haréns dos reis sem oferecer qualquer risco. 

 • “Eunucos por causa do reino dos céus”. Não castrados. Que optaram pelo celibato para que pudessem servir a Deus no ministério sem distração com esposa e filhos. Paulo, João Batista e o próprio Jesus poderiam ser contados entre esses. Alguns chegaram a se castrar, como no caso de Orígenes, para se livrar da tentação sexual.

 • “Eunucos desde o ventre materno”. São os que nasceram desprovidos de atração sexual pelo sexo oposto ou são hermafroditas. Muitos, por conta da pressão social para que tenham vida sexual ativa, acabam desenvolvendo atração por pessoas do mesmo sexo. Tais indivíduos possuem libido, porém esta é direcionada para outras atividades além do sexo. Geralmente, atividades ligadas à estética, às artes, que requerem certo grau de sensibilidade. Embora eu os tenha deixado por último em minha exposição, Jesus os coloca encabeçando a lista dos eunucos. 

Em outras palavras, uns são eunucos por imposição social, outros por razões psicológicas ou fisiológicas, e outros por decisão própria, geralmente motivados por idealismo.

O que faremos a esses indivíduos? Que rótulo lhes daremos? Qual será nossa sentença? Tomaremos Deuteronômio ou Isaías como base? E o que faremos com o que Jesus disse acerca deles? Será que estamos entre os que Jesus denunciou como não estando preparados para recebê-los? 

Não foi à toa que Filipe foi o discípulo escolhido por Deus para introduzir o Evangelho ao eunuco etíope. Logo no início de sua caminhada cristã, ele testemunhou a maneira como Jesus lidava com os preconceitos humanos. O mesmo Natanael que comentara com Filipe que da região de procedência de Jesus não poderia vir nada que prestasse, ouviu dos lábios do Mestre: Este sim é um verdadeiro israelita! Com este elogio, Jesus interrompeu o ciclo do preconceito. Em vez de rebater, Ele preferiu elogiar. Imagino a cara de Natanael diante de Filipe. O que este não podia supor era que aquela experiência o habilitaria para mais tarde ser tirado do meio das multidões em Samaria para pregar a um eunuco (que ainda por cima era negro!) no caminho de Gaza (At.8:27-39). 

Filipe não perde tempo apontando as eventuais falhas morais do eunuco. Em vez disso, fala-lhe de Cristo, tomando como base um trecho do mesmo livro que diz que Deus receberia eunucos e lhes daria um nome eterno. Convencido da disposição divina em recebê-lo como filho, o eunuco diz: “Eis a água, o que me impede de ser batizado?” Se fosse hoje, influenciado por pregadores modernos, talvez Filipe dissesse: Bem, acho que você precisaria tomar um banho de loja primeiro. Trocar essas roupas espalhafatosas por um terno e gravata. Mudar esses trejeitos efeminados. Arrumar uma namorada para comprovar que foi curado. E depois de batizado, gravar um DVD de testemunho para a gente divulgar. Se um eunuco me fizesse a mesma pergunta hoje (o que me impede de ser batizado?), eu responderia: o preconceito. Daí, ele procuraria outro eunuco para evangelizar, conduziria-o a Cristo e abriria uma igreja de eunucos. 

É... Jesus tinha razão. Não estávamos preparados à época, e provavelmente, muito menos hoje. Chegamos a Gaza, mas nos recusamos a aproximar-nos da carruagem em movimento. Talvez por amá-los na mesma proporção de que amamos os bandidos... Dizemos amá-los, mas optamos por manter distância. E assim, preferimos a inflexibilidade da Lei ao Espírito da Graça. E é justamente a Lei que nos oferece a chave com a qual trancamos o armário no qual muitos se escondem (alguns dos quais exercem cargos eclesiásticos, usando o púlpito como armário). Somente um ambiente impregnado de graça oferecerá acolhimento e compaixão. Afinal, somos todos humanos, desesperadamente carentes desta graça capaz de fazer-nos renunciar às próprias paixões e concupiscências (Tt.2:11-12). Graça que, igualmente, nos capacita a vencer nossos preconceitos e medos.

Respondendo à pergunta proposta no título deste post. O eunuco da vez é todo aquele que desprezamos, do qual queremos distância. Pelo menos assim, não seremos obrigados a amá-los, já que esta obrigação só diz respeito ao próximo... só que não!

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